COLOMBIA, ABORTO E LIBERDADE

(Leitura: 15 min)

Nesta semana, o tema aborto ganhou as machetes devido à uma decisão da Corte Constitucional da Colômbia, a Suprema Corte deles, que descriminalizou quaisquer abortos realizados até 24 semanas de gestação. Antes disso, o aborto era criminalizado lá, exceto em casos de estupro ou mal formação fetal, bem semelhante a como é hoje no Brasil. Em meio a reações emocionais contra e a favor, desejo oferecer uma reflexão o mais racional possível.

Vamos começar analisando o caso específico da Colômbia. A primeira coisa que chama atenção é que a mudança foi feita por uma decisão da Suprema Corte, contrariando as leis do país. Isso é lamentável. Corrobora uma perigosa tendência no Ocidente de o Judiciário fazer leis. Sem ainda entrar no mérito da decisão, numa democracia, mudanças legislativas deveriam ser feitas pelo parlamento, onde estão os representantes eleitos pelos cidadãos. Por mais que os parlamentos tenho defeitos, ali, as leis são debatidas abertamente, dentro de um processo previsível, com espaço para manifestações da sociedade. Não se inventou ainda jeito melhor de legislar. O papel do judiciário é aplicar as leis, não decretá-las ou modificá-las. Portanto, uma mudança tão importante e tão polêmica feita por uma canetada do judiciário me parece ilegítima.

Por outro lado, ao ver tantas críticas às pessoas que estavam celebrando vitória, críticas que pretendem uma indignação por ter gente celebrando o direito de abortar fetos de 24 semanas, acho importante salientar que não me parece ser isso que tava sendo comemorado. O que foi descriminalizado é o direito ao aborto e isso que foi celebrado. O limite máximo de tempo, no caso 24 semanas, é um ponto secundário. O fato de alguém apoiar a descriminalização não significa que a pessoa aprove esse limite específico. Além disso, mesmo o limite sendo de 24 semanas, a mulher que quiser fazer um aborto poderá fazê-lo bem antes. É claro que a questão do limite de tempo é importante, e vou tratar dela mais adiante. Porém, acho importante definir quais são os fatos antes de ir pras opiniões.

Olhando para o tema de forma mais geral, pra além do caso colombiano, acho válido começar analisando sob a ética libertária. Quem acompanha meus escritos sabe de minha simpatia pelo libertarianismo, portanto, não podia deixar de analisar por essa ótica. O que o libertarianismo tem a dizer sobre aborto? Na minha opinião, bem pouco. É um caso do qual a ética libertária não dá conta. Os principais valores libertários são a liberdade e a propriedade, sendo a propriedade do próprio corpo, da própria vida, a mais essencial. Só que aí duas ideias de vida entram em conflito. Se pensarmos do ponto de vista do direito à vida do feto, o aborto seria um crime, mas, se por outro lado, pensarmos no direito a auto determinação da mulher sobre seu próprio corpo, sem o qual um feto não é viável, o aborto seria um direito básico da mulher, e ambas as decisões seriam coerentes com os princípios libertários. Ou seja, nesse caso a ética libertária desemboca num paradoxo. Então, tudo depende do que se entende por começo da vida e até que ponto se considera viável que uma vida possa depender de outra e ainda assim ser autônoma. Duas sociedades com valores e tradições diferentes poderiam ter leis opostas sobre aborto e ainda assim serem ambas libertárias. Pra resolver esse dilema, uma sociedade, libertária ou não, precisa recorrer a outras fontes para fundamentar suas decisões.

Uma fas fontes onde uma sociedade poderia buscar fundamento para tratar a questão do aborto é a religião. Sabemos que a maioria das religiões consideram a vida sagrada desde a concepção e portanto recriminam ou proíbem o aborto. Só que, numa sociedade laica, as decisões baseadas em critérios religiosos, deveriam ser deixadas para o livre arbítrio de cada indivíduo, não devendo ser matéria de lei.

Outra fonte de argumentação poderia ser a ética deontológica ou o utilitarismo. É bom ou ruim que nasçam crianças de pessoas que não desejam ser pais ou mães, que provavelmente não iriam cuidar bem desses filhos, os quais teriam maiores changes de se tornarem pessoas infelizes, despreparadas pra vida, talvez se tornassem criminosos ou seguissem outros caminhos que as levariam a se tornarem fardos para toda a sociedade? Por outro lado, permitir que embriões e fetos sejam eliminados por conveniência poderia levar uma sociedade a banalizar a vida, levando à normalização de outros comportamentos violentos ou destrutivos?

Outra fonte de sustentação às políticas sobre o tema é a ciência e a tecnologia. Se presumirmos que existe algum caso em que o aborto deva ser permitido, aí, temos de pensar sobre métodos, sobre impactos disso em políticas de saúde pública nos estados que as tem, sobre as responsabilidades dos profissionais de saúde nos procedimentos, e, sobretudo, no limite de tempo até quando o aborto é permitido, o que leva à discussão sobre a partir de que momento o embrião se torna um ser vivo autônomo, desde quando tem consciência ou sentimentos e por aí afora.

Se quisermos olhar pra questão do aborto de forma racional, outro aspecto que precisa ser enfrentado é a manipulação retórica que é amplamente usada tanto por quem milita a favor quanto por quem milita contra. Quem é contra costuma demonstrar indignação dizendo que abortistas estão querendo matar bebês de não sei quantas semanas. Mas, será que essas pessoas realmente pensam em embriões e fetos como bebês? Algum casal comemora o dia da concepção dos filhos? Ou preferem comemorar o aniversário de nascimento? Uma mãe que saia de casa com seu filho após um mês do nascimento, se alguém perguntar qual a idade dele, vai responder que ele tem 10 meses ou que ele tem 1 mês? Sabemos as respostas, então, pra bem da verdade, devemos admitir que toda nossa cultura só conta mesmo o bebê como uma pessoa autônoma depois que ele nasce.

Por outro lado, militantes pró direito de aborto, quando confrontados, as vezes se referem a embriões e fetos como amontoados de células. É fácil dizer isso sobre um feto genérico numa conversa abstrata, mas, quem é que se refere ao próprio feto, a um desejado futuro filho, como amontoado de células? Ninguém, né. Então, vamos combinar que, qualquer que seja nosso lado nesse debate, um embrião ou um feto é mais que células, tem todo um significado e uma simbologia na cultura e nos sentimentos humanos.

A verdade, a meu ver, é que todas as sociedades humanas entendem, mesmo que intuitivamente, que a individualidade não começa num único ponto do tempo, nem na concepção nem no nascimento. É um processo. As vezes começa até antes da concepção, com um casal planejando o futuro filho, construindo histórias que serão depois incorporadas à história do filho. Até o direito reconhece essa certa existência pré concepção ao permitir que se deixe em testamento doações pra futuros filhos. A concepção é, naturalmente, um passo muito importante do processo, mas, ainda assim, um passo. E então começa uma fase de formação, tanto biológica, com o embrião e depois o feto crescendo na barriga da mulher, quanto social e sentimental, com a ideia de um novo indivíduo se formando dentro da família e da comunidade. E esse processo evolui até o nascimento, até a separação dos corpos de mãe e filho e o surgimento de um indivíduo completo e autônomo.

Então, creio que todos os lados desse debate deveriam fazer um esforço para reconhecer que há esse aspecto de processo evolutivo na formação da individualidade e ver as opiniões contrárias a luz desse processo. Quase todo mundo, por exemplo, reconhece a possibilidade de aborto quando a vida da mulher está em risco. Ora, quase ninguém aceitaria que uma criança recém nascida fosse abatida para, de algum modo, salvar a vida da mãe. Então, se a pessoa admite aborto em caso de risco de vida da mulher, já admitiu que de algum modo uma criança é mais viva do que um feto. Por outro lado, até quem defende o direito de aborto em qualquer circunstância, dificilmente vai discordar de que um aborto de um embrião de 4 semanas é menos traumático do que o de um feto de 12 semanas.

Estabelecido esse contexto, me parece o momento de abordar a questão do tempo limite. Aí, me parece que o conhecimento da ciência e tecnologia médica vem a calhar, considerando tanto a formação do feto e de seu sistema nervoso quanto a saúde física e mental da mulher. Mas, também, cabe considerar questões culturais e sentimentais. Não somos máquinas, sentimentos e conceitos relativos à valorização ou banalização da vida também são importantes e tem impactos nos indivíduos e na sociedade. Me parece que é importante estabelecer limites de tempo que permitam à mulher tomar uma decisão bem pensada e ao mesmo tempo respeite a percepção média de valorização da vida.

Outra coisa que quem acompanha minhas ideias bem sabe é que, pra mim, a liberdade é muito importante, porém, anda lado a lado com outro conceito tão importante quanto, que é a responsabilidade. Cada posicionamento tem contrapartidas, que muitas vezes tendemos a esquecer, seja por distração ou por conveniência.

Se reconhecermos o direito da mulher de abortar, ou seja, de desistir de uma gravidez depois da concepção, então, por coerência, não podemos negar esse direito ao homem. Numa sociedade que reconheça o direto da mulher ao aborto, o homem também deveria ser livre para, uma vez informado da futura paternidade, decidir se vai assumi-la. Se a mulher esconder do homem a gravidez ou, sabendo da negativa dele, levar a gravidez adiante, deveria assumir sozinha as responsabilidades pelo filho. Mas, nesse caso, o filho estaria sendo punido pela divergência entre os pais? Creio que não. Ninguém pode escolher as circunstâncias do próprio nascimento. Temos que viver com o que somos.

Por outro lado, uma sociedade que proíba o aborto, que considere que embriões e fetos tenham o direito de se desenvolver e nascer independente da disposição e do desejo da mãe, assume para si a obrigação de cuidar dessa criança. De uma pessoa que se acha no direito de obrigar uma mulher a levar adiante uma gravidez indesejada, eu esperaria que essa pessoa se disponha a criar a criança como se dela fosse. Qualquer coisa menos que isso seria uma contradição.

Concluindo, minha percepção é de que se trata de um assunto bem complexo, com múltiplos aspectos e muitas variáveis sobre as quais as sociedades tem bem pouco controle. E nesses casos, minha convicção é de que o estado deve interferir o mínimo possível. Não há estado que seja muito bom em cuidar de gente, em abarcar suas complexidades biológicas, culturais e emocionais. Então, na dúvida, é melhor deixar que os indivíduos tomem suas próprias decisões e vivam com elas.

ORGANIZANDO AS IDÉIAS

(Leitura: 4 min)

Talvez, a característica que mais nos diferencia de outros animas seja nossa capacidade de abstração, nossa capacidade de imaginar além da realidade presente e raciocinar com base em cenários imaginados, refletir sobre o passado e projetar possíveis futuros.

Todos nós temos a capacidade de pensamento abstrato e, suponho, não há bicho humano que não o pratique. Mas, muitos de nós, têm a tendência a misturar tudo num único plano. Realidade, possibilidades, valores, sentimentos, tudo misturado, um plano unidimensional de pensamento. Porém, alguns humanos conseguem segmentar o pensamento em vários níveis de abstração e raciocinar, debater, planejar e agir em cada nível distinto sem perder o rumo e sem deixar que uma linha de conduta atrapalhe a outra. É uma habilidade fascinante, muito útil e que acredito que mereça ser cultivada e aperfeiçoada.

Eu costumo dividir o pensamento abstrato em quatro níveis principais e tentar me manter consciente sobre em qual nível eu estou em cada iniciativa. Os quatro níveis são: O ótimo, o bom, o regular e o dane-se.

O nível do ótimo é o nível da utopia. É onde pensamos em como as coisas deveriam ser. É onde sonhamos com um mundo perfeito, onde todos, de algum modo, são felizes e realizados, ou pelo menos todos que importam pra nós. É o nível onde vamos para recarregar as esperanças.

O nível do bom é o nível do otimismo racional. É o nível da melhoria possível no curto e médio prazo. É onde pensamos em como as coisas podem ser um pouco melhores, partindo da realidade presente e avançando em meio a todas as imperfeições das pessoas e das coisas. É o nível dos planos detalhados e das iniciativas concretas.

O nível do regular é o nível da realidade presente. É o nível da sobrevivência. É o nível onde lidamos com problemas imediatos, com gente inconveniente e limitações de todo tipo. É onde ganhamos a vida, pagamos as contas, amamos e odiamos, choramos e rimos e damos um jeito de manter e ampliar as forças para podermos caminhar em direção aos níveis do bom e do ótimo.

E, por fim, temos o nível do dane-se. Porque não somos de ferro. Porque tem hora que a gente cansa, que precisa de um refresco. É onde damos um tempo de todos os problemas e relaxamos. É onde corremos pro boteco pra tomar uma gelada, ou pra igreja pra fazer uma prece, ou pra um soluço num ombro aconchegante. É onde assumimos nossas fraquezas e buscamos alívio. É onde desistimos por hoje de deixamos pra lutar outro dia.

Saber navegar pelos quatro níveis me parece bastante útil e necessário para uma vida sã e produtiva. Ter consciência sobre em que nível se está em cada situação é melhor ainda. Perceber em que nível o outro está e ter empatia na convivência com ele é a perfeição, o estado da arte nas relações humanas.

LÁZARO E OUTROS DILEMAS BRASILEIROS

(Leitura: 6 min)

Eu tava evitando falar sobre a busca e execução do Lázaro porque é um tema tão escorregadio, que permite tantas análises distintas, que acaba sendo grande o risco de a gente se perder, cometer exageros ou injustiças com algumas das partes. Mas, alguns amigos disseram que gostariam de me ouvir a respeito, então, tentarei elaborar o que penso.

Eu tento organizar minha visão de mundo em quatro níveis de abstração. Tem o nível do ideal (como eu gostaria que um mundo fosse), o nível do bom (já que o ideal tá distante, qual a melhor forma de nos organizarmos e viver bem), o nível do razoável (quando nem o bom é possível, o que fazer pra encarar a realidade e lidar com os problemas) e, finalmente, o nível do dane-se (onde a gente apela, briga, xinga, e vai tomar uma cerveja pra relaxar que ninguém é de ferro). Acho que terei que passar por todos os níveis pra tentar dizer o que penso sobre esse caso do Lázaro.

No nível ideal esse caso sequer existiria. O Lázaro foi preso mais de uma vez antes por crimes diversos. Passou pela avaliação de psiquiatras forenses. Tava claro que ele era uma séria ameaça à segurança pública. Mas, por negligência ou ingenuidade ideológica (ou ambas) de alguns operadores do direito, essa ameaça foi devolvida à sociedade. Não defendo uma política de sair prendendo pessoas e jogando a chave fora. Mas, acredito que o mal existe, que tem pessoas que são caso perdido, que tem de ser contidas pelo bem dos demais. Uma sociedade bem organizada devia saber identificar e conter tais pessoas.

Mas, não vivemos no mundo ideal. Então, devíamos tentar pelo menos construir uma sociedade boa. E, nesse nível, uma pessoa que comete os crimes que o Lázaro cometeu devia ser presa, processada dentro da lei, e condenada a passar a vida toda na cadeia. E devia virar caso de estudo. Escolas deviam levar os jovens pra visitar cadeias, ver gente que vai passar a vida presa e conhecer dos seus crimes para saberem que, se forem pelo mesmo caminho, vão acabar tendo um destino semelhante.

Infelizmente, a maneira como as coisas funcionam no nosso país passa longe de ser boas. Temos leis severas para condutas inofensivas e leis brandas para crimes graves. Nosso sistema judiciário tá cheio de gente que estudou muito pra passar num concurso mas aprendeu pouco da realidade. O fato de esse criminoso ter passado várias vezes pelo sistema e voltado as ruas pra cometer mais crimes deixa claro que as soluções legais são bastante falhas. Então, não consigo lamentar porque esse criminoso foi morto e não preso. Entendo o alívio que muita gente deve ter sentido em saber que pelo menos esse não vai atacar mais. Entendo o policial que pensou “esse eu não terei de prender novamente”. Por outro lado, quando vejo um corpo sendo manejado de um carro pro outro como um saco de lixo, enquanto funcionários públicos comemoram e se felicitam, fico preocupado.

Aí, já estamos no nível do dane-se. E o dane-se deve acontecer num nível pessoal, nunca social. Eu posso compreender que um policial que passou semanas tensas caçando um criminoso, se arriscando, sofrendo pressões profissionais e sociais, fique feliz de que a missão foi cumprida, acabou. É humano. Posso entender se fragá-lo em sua casa socando o ar e celebrando. Porém, celebrar em público uma morte, mesmo que de um criminoso, manejar um corpo como saco de lixo diante das câmeras, e influenciadores e autoridades fazerem posts públicos exaltando o fato, me parece que passou do ponto.

Aquele corpo já foi uma pessoa, um filho de alguém, uma forma humana que lembra muitas outras. De quem se vê na necessidade de lidar com um corpo eu espero alguma compostura, algum respeito. De quem tem como profissão, fazer isso, além de compostura, espero profissionalismo. Se são funcionários públicos e autoridades, espero mais compostura e profissionalismo ainda.

Enfim, a impressão geral que levo desse episódio é que nos livramos de um criminoso, mas, também, emitimos mais um alerta de que estamos um tanto quanto perdidos em nossos ideias, valores e prioridades.

EVOLUÇÃO X DESIGN INTELIGENTE

Por décadas, criacionistas tentaram substituir a Teoria da Evolução pelo Livro do Gênesis, porém, a evolução prevaleceu nas escolas e foi ratificada quando atacada na justiça. A luta pela sobrevivência fez surgir novos tipos de criacionistas, melhor adaptados ao ambiente atual. O novo criacionismo se disfarça sobre o nome de design inteligente e é mais perigoso do que o criacionismo à moda antiga.” – Post de um grupo fechado do qual participo.

Sim, ainda tem por aí muito gente que não aceita a Teoria da Evolução. Lamento por elas. Porém, Me impressiona mais a quantidade de pessoas que aceitam a Teoria da Evolução na biologia, mas, não conseguem reconhecer o poder dos processos evolutivos em outras áreas. E são pessoas com acesso a conhecimento e cultura. Pessoas que preferem planejamento centralizado a liberalismo na economia estão optando por um suposto design inteligente ao invés de evolução. Pessoas que olham pra história come se essa fosse planejada e dirigida por uma elite ao invés de ser um processo caótico resultante de interesses individuais que se entrecruzam estão favorecendo a ideia de design inteligente ao invés de evolução. E assim por diante. Processos evolutivos estão acontecendo pra todo lado à nossa volta e muitos de nós não conseguimos percebê-los e seguimos buscando (e culpando) algum projetista genial atrás de cada processo complexo. Então, antes de rir de quem acredita em design inteligente na biologia, talvez seja melhor a gente checar as nossas crenças e ver se não estamos também acreditando em design inteligente.

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ESCOLA E SABEDORIA

Se a escola tivesse que ensinar tudo que uma pessoa precisa saber pra ser uma pessoa decente, ninguém nunca saia de lá. Não tem atalho. Tem coisa que tem que ser aprendida na família. Tem coisa que tem que ser aprendida na comunidade. Tem coisa que tem que ser aprendida ao longo da vida. E tem vergonha na cara, que se a pessoa nasce sem, nunca vai aprender.

BASE BOLSONARISTA

Bolsonaro rompe de vez com a Lava Jato. Alguns especulam que isso pode impactar sua base de apoio popular. Acho que impacta bem pouco. Segue o porquê.

O bolsonarismo foi erguido sobre três pilares. Combate à corrupção, liberalismo econômico e conservadorismo moral. Os três pilares contribuíram pra eleição do Bolsonaro. Mas, um é principal e dois são acessórios. Vamos ver mais de perto cada pilar.

O combate à corrupção foi o sopro que fez renascer a direita no Brasil. A direita tava hibernando deste o fim melancólico da ditadura militar. Tava envergonhada, com a cabeça enfiada na terra feito uma avestruz, mas, não tava morta. Boa parte do brasileiro médio sempre foi de direita. Só passou três décadas com vergonha de falar isso em voz alta.

A direita começou a renascer antes da Lava Jato. O primeiro ato que pôs o combate à corrupção na ordem do dia foi o Mensalão, que bateu direto no PT mas também resvalou no PSDB. A lava jato consolidou esse movimento. Os dois sabores de esquerda que mandavam no país foram arranhados. Os dois polos de poder político no país ficaram abalados. Tava aberto o espaço pra direita renascer. Bolsonaro e seu grupo estavam no lugar e hora certos pra ocupar esse espaço. O pilar do combate à corrupção botou o bolsonarismo de pé, mas, não é o que o sustenta.

O voto do pessoal revoltado com tanta corrupção ajudou Bolsonaro, mas, teve outro grupo importante. O pensamento liberal com foco na economia já vinha surgindo no Brasil desde os tempos do FHC e, nos últimos anos, ganhou razoável apelo popular em algumas camadas da população. Além de contar com o apoio de boa parte do empresariado. Em 2016, liberalismo reprentava voto e, principalmente, apoio econômico. O bolsonarismo soube cativar esse apoio também. E nem foi difícil, bastou colocar no barco o Paulo Guedes e dizer que ele teria liberdade pra fazer política econômica liberal. O liberais tinham que pagar pra ver, afinal, não tinham outro candidato viável mesmo. Mas, combate à corrupção e liberalismo econômico ainda não eram suficientes pra fazer um movimento vencedor. É aí que entra o terceiro pilar.

Uma boa parte dos brasileiros são conservadores, moralistas, do tipo que pode até sair escondido com um travesti, mas, não quer ver beijo gay na TV, pode até ter amante, mas, acredita firmemente na família tradicional. Pode não cumprir nenhum dos dez mandamentos, mas, se considera religioso à moda antiga. As diversas iniciativas recentes que tentaram reformar a sociedade brasileira na marra, notadamente no governo petista, deixaram esse pessoal no limite. Estavam prontos para reagir. O bolsonarismo deu a eles o meio e a oportunidade.

Somou-se a esse pilar da moral o pessoal que despreza qualquer conversa sobre aborto e o pessoal que se assusta com qualquer conversa sobre relaxamento da repressão às drogas. Se sentiu representado também o pessoal que não aguenta mais os exageros da militância ambientalista. E o bloco foi engrossando.

Por fim, esse pilar também foi reforçado por muita gente cansada de ser assaltada, sequestrada e estuprada e ver o estado se preocupar mais com os direitos dos criminosos do que com o direito das vítimas. Por muita gente que desistiu de esperar segurança do estado e quer se defender por conta própria. Todos esses grupos que se sentem vítimas das transformações sociais das últimas décadas tornaram o pilar da moral conservadora robusto o bastante para ser a força de sustentação do bolsonarismo. Isso somado aos pilares auxiliares do combate à corrupção e do liberalismo econômico, botaram o bolsonarismo no poder.

O pilar de sustentação, que mais encontra eco na população brasileira, é o conservadorismo moral. É por isso que o bolsonarismo pode se dar ao luxo de mandar o Moro pra oposição e decretar a morte da Lava Jato. É por isso que podem fritar o Paulo Guedes em fogo brando. Mesmo que os economistas liberais saiam todos do governo o pilar principal continua de pé. As pessoas que sustentam o pilar principal podem até ficarem chateadas com alguma concessão do governo ao centrão, mas, continuarão fiéis. Elas não têm outra opção viável e sabem que não terão tão cedo. Enquanto o discurso de Bolsonaro for favorável à proibição do aborto, à repressão às drogas, ao combate à ideologia de gênero e ao direito de defesa, estarão com ele.

O enfraquecimento dos pilares do combate à corrupção e do liberalismo econômico causam algum desgaste ao bolsonarismo. Mas, isso pode ser compensado com populismo, com políticas de assistência social que tragam pro bolsonarismo outro público, uma massa de miseráveis que nas últimas décadas se especializaram em viver de ajudas governamentais.

Talvez, esse rearranjo seja suficiente para garantir que o bolsonarismo continue sendo uma força dominante. Talvez não. Creio que isso vai depender também dos demais atores políticos do país e seus movimentos. Uma coisa é certa, sem graça nosso futuro político não será.

VIGIAR E PUNIR (Resenha)

(Tempo de leitura: 5 min)

Nesta obra, Foucault é o historiador em essência. Ele analisa o desenvolvimento do trinômio poder, pena e disciplina desde a Idade Média até o Século XX. Destaca como a punição ao crime evolui do castigo físico, aplicado em público em nome do Rei, passando pela propostas de reforma que buscavam variar a pena conforme o bem ofendido pelo crime até chegar ao uso quase universal da prisão como pena no Estado Moderno. Mostra também como a arte da disciplina evoluiu neste período, passando a abarcar diversos processos de controle coletivo, não só nas prisões, mas também nos hospitais, nas escolas, nas fábricas e outras instituições que nasceram da revolução industrial. Por fim, demostra como a pena e a disciplina estão relacionadas aos mecanismos de poder, como se encaixam num arranjo social mais geral que passa a predominar nas sociedades modernas. Em sua performance descritiva e analítica, o autor é brilhante.

No entanto, ao exercer brilhantemente seu papel de historiador, ele não escapa de um problema comum nas análises históricas. Ele conta a história do trinômio poder, pena, e disciplina através de uma narrativa que busca transformar uma coletânea de acontecimentos que vão se sucedendo e se cruzando em uma cadeia de eventos planejados, coordenados e dirigidos a uma finalidade. Ele transforma um “processo evolutivo” em um “design inteligente”. Esse é um desafio que o pessoal da história terá que encarar algum dia. Achar um jeito de ser empolgante sem ser romântico. Encontrar um equilíbrio entre encanto e objetividade.

Um ponto marcante do livro é a apresentação do conceito de panóptico, um prédio construído para ser o paraíso da disciplina, um conjunto de torres e células onde indivíduos são levados viver e produzir sob constante vigilância, enquanto os vigias também são vigiados numa espiral de disciplina, onde o vigiar e ser vigiado se torna o próprio motor que movimenta a existência. Avançando um pouco no tempo, vemos que o panóptico, como construção material, se torna obsoleto com o desenvolvimento da tecnologia. As mesmas funções podem ser obtidas com mais acuidade e maior escala através de câmeras e telas, e levadas a um nível ainda mais automático e sutil através da inteligência artificial e da ciência de dados.

Por fim, fica da obra a impressão que o autor não economiza na crítica ao mundo em que vive e aos processos que lhe deram origem, porém, não consegue esboçar qualquer proposta, qualquer caminho alternativo para longe das tensões ou angústias que o incomodam. Parece se ressentir com a evolução que permitiu a Europa multiplicar sua população, sua expectativa de vida e os confortos materiais de seus habitantes, mas, ao mesmo tempo falha em propor transformações positivas. Demonstra uma visão amarga do presente e uma perspectiva sombria do futuro. A gente quase concluí que ele prefere os suplícios da era feudal às disciplinas do mundo moderno, que deseja trocar a abundância industrial pela escassez do estado de natureza. A leitura é saborosa, mas, deixa um retrogosto de apologia ao passado.

O PRESIDENTE DA SUÍÇA

Você sabe quem é o presidente da Suíça? Provavelmente não. Pode citar pelo menos um presidente suíço famoso em algum momento da história? Poucos poderão. Mas, você já ouviu falar dos chocolates suíços, dos queijos suíços, dos relógios suíços, dos bancos suíços. A Suíça não é um país irrelevante no cenário internacional. Por que, então, seus presidentes não são celebridades?

É porque o que importa é a Suíça, o povo suíço, o desenvolvimento da Suíça, o bem estar do povo suíço e não a fama ou a mitificação de seus líderes.

No dia que o Brasil e os brasileiros forem mais relevantes que Bolsonaros, Lulas, Juscelinos, Getúlios ou Pedros, estaremos mais perto de sermos uma sociedade civilizada.

A SOCIEDADE CALA, A ESCOLA FALA

Trabalhei por quase 15 anos em duas escolas simultaneamente, de manhã a pública e a tarde a privada. Na pública conheci o Léo e na privada o Vítor. Léo era o mais velho de quatro irmãos, pai preso, mãe diarista. Quando o conheci tinha 8 anos de idade. Vitor era o mais velho de 2 irmãos, também com 8 anos. Pai e mãe dentistas, consultório em bairro chique. Léo morava em barraco pequeno, de dois cômodos e quase sempre só comia na escola. Vitor morava em condomínio de Luxo, ia pra escola depois de tomar café e almoçar. Ao chegar em casa jantava e tomava leite antes de dormir. Léo, com dez anos cuidava da casa e quando tinha comida, cozinhava, pois a mãe trabalhava o dia todo fora. Vitor, até a última vez que o vi, já adolescente, não sabia lavar uma louça. Léo fazia a lição sozinho e ainda ajudava os irmãos menores. Vitor sempre contou com a ajuda da tecnologia e dos pais. Aos finais de semana Leo brincava com os irmãos na rua e cuidava da casa. Aos finais de semana Vitor frequentava buffets, shoppings, restaurantes. Léo nunca fez um curso extra, pois precisava ficar em casa para mãe trabalhar. Vitor sempre fez inglês, francês, natação e guitarra. Com 13 anos Leo precisou trabalhar na vendinha do bairro para ajudar em casa. Vitor ganhava uma mesada de R$ 200,00. A mãe de Léo se envolveu com um cara da pesada e acabou sendo presa. Vitor sempre contou com o apoio e suporte de uma família unida, equilibrada e presente. Quando Leo completou 15 anos seus irmãos foram para um abrigo e ele ficou com um parente próximo. Aos 15 anos Vitor ganhou uma viagem para o exterior. Na casa nova, Leo precisou ajudar com as despesas trabalhando período integral, deixou a escola temporariamente. Vitor entrou em universidade renomada totalmente financiada pelos pais. Não sou mais professora nessas escolas, mas colegas que ainda trabalham lá me deram notícias atuais: Leo hoje trabalha no IFood durante o dia para pagar um curso técnico que faz a noite e o Vitor acabou de se formar em engenharia. E ainda tem gente nesse mundo que defende a meritocracia! O Léo é só uma história entre milhares. Um garoto que se esforçou muito, mas encontrou diversos obstáculos pelo caminho que trilhou a pé descalço em chão de terra (enquanto o colega Vitor viajava de “jatinho particular”). O Léo vai chegar ao destino e se formar, eu tenho certeza disso, mas por causa de uma sociedade injusta e desigual, o menino vai levar o triplo do tempo e precisar do triplo de força pra não desistir… Quem usa o argumento da meritocracia, pra mim, é porque nunca conheceu a realidade das nossas periferias de verdade. Fala de algo que não existe! E, pior, coloca um peso enorme nas costas de quem já sofre. Isso se chama tortura!” – Postado por uma professora.

Meus comentários:

1. Vitor não tem culpa pela situação de Léo.
2. As circunstâncias difíceis que Léo enfrenta não são causadas pelas circunstâncias fáceis que Vitor vivencia, nem vice-versa.
3. Igualar todo garoto rico a Vitor e todo garoto pobre a Léo é preconceito. Nem toda família rica é bem estruturada e cuidadosa com os filhos como o texto sugere que a de Vitor é. Nem toda família pobre é desestruturada levando os filhos à uma situação de abandono como a de Léo.
4. Usar esse texto para criticar a meritocracia é desconhecer o conceito. Meritocracia não é sobre todos saírem do mesmo lugar, nas mesmas condições e buscarem os mesmos resultados. Isso é gincana. Meritocracia é sobre fazer o melhor, com os recursos de que se dispõe, buscando a realização de interesses pessoais. Pelo texto, tanto Vitor quanto Léo têm muitos méritos.
5. Se quisermos ver menos Léo’s no nosso país, precisamos entender os motivos pelos quais temos tantos. E tem que ver os motivos reais, específicos, não basta se acomodar a narrativas genéricas como “sociedade injusta e desigual”. E então poderemos atuar para diminuir os obstáculos e aumentar as oportunidades.
6. Eu tenho convicção, e aí é uma opinião pessoal, que não é dando cada vez mais dinheiro para o governo supostamente fazer projetos sociais para os Léo’s enquanto a maior parte dos recursos se perdem em ralos de corrupção e ineficiência que vamos melhorar esse quadro. E muito menos vamos melhorar as coisas culpando e caçando os Vitor’s.

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NATURAS, THAMMIES, TRANS E TOFOLLIS

A Natura é uma empresa privada e pode estrelar suas propagandas com o que ela quiser, seja homem, mulher, trans, capivara ou árvore. Comprar ou não produtos da natura é escolha de cada um. E é direito de cada um elogiar ou criticar, comprar mais ou boicotar.

O que assusta do noticiário recente é o presidente da Corte Suprema achar que ele e a instituição que ora preside são editores do país, que têm o direito de controlar o que os brasileiros dizem. Talvez queiram controlar também o que pensamos.

Como ainda não nos foi de todo cassado o direito de dizer o que pensamos, digo o que penso do conceito de pessoa trans. O comportamento sexual de uma pessoa é assunto dela. Bem como seu modo de se vestir, de se apresentar, de se comportar, enfim, suas escolhas de vida não são da conta de ninguém. Se uma pessoa do sexo masculino quer transformar seu corpo e seu comportamento a ponto de parecer uma mulher, está em seu direito. Porém, quando a pessoa quer impor, pela força do estado, que os outros a reconheçam como mulher, passou do ponto. Mulher é um conceito já bem definido. Já que a pessoa não quer ser considerada homem, que crie para si um novo conceito. Exigir para si o conceito de mulher é uma violência porque esse já tem dono, já é a identidade de um grupo bem definido. A pessoa pode se apresentar como mulher pra si mesma, pode até buscar convencer outras a lhe dar tal título, mas, obrigar a todos a aceitar tal ficção está errado. E fica ainda mais complicado quando a pessoa pleiteia o reconhecimento civil e as consequentes diferenciações de tratamento por parte do estado. O mesmo vale para uma pessoa do sexo feminino que faz o caminho oposto.

Cada indivíduo deve ser livre pra viver sua vida como melhor lhe convier. Cada grupo deve ser livre para construir seus espaços, realizar suas aspirações e serem respeitados. Porém, ninguém tem o direito de invadir um espaço que já é de outro, nem modelar o pensamento alheio, tanto no nível individual quanto social. Quer mudar o pensamento dos outros, seja sobre o mundo ou sobre você mesmo? Convença-os, obtenha o consentimento deles para os seus pleitos. Impor sua narrativa à força ou colonizar um território que já tem outro dono não é progresso, é só mais uma ciclo de violência.