COLOMBIA, ABORTO E LIBERDADE

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Nesta semana, o tema aborto ganhou as machetes devido à uma decisão da Corte Constitucional da Colômbia, a Suprema Corte deles, que descriminalizou quaisquer abortos realizados até 24 semanas de gestação. Antes disso, o aborto era criminalizado lá, exceto em casos de estupro ou mal formação fetal, bem semelhante a como é hoje no Brasil. Em meio a reações emocionais contra e a favor, desejo oferecer uma reflexão o mais racional possível.

Vamos começar analisando o caso específico da Colômbia. A primeira coisa que chama atenção é que a mudança foi feita por uma decisão da Suprema Corte, contrariando as leis do país. Isso é lamentável. Corrobora uma perigosa tendência no Ocidente de o Judiciário fazer leis. Sem ainda entrar no mérito da decisão, numa democracia, mudanças legislativas deveriam ser feitas pelo parlamento, onde estão os representantes eleitos pelos cidadãos. Por mais que os parlamentos tenho defeitos, ali, as leis são debatidas abertamente, dentro de um processo previsível, com espaço para manifestações da sociedade. Não se inventou ainda jeito melhor de legislar. O papel do judiciário é aplicar as leis, não decretá-las ou modificá-las. Portanto, uma mudança tão importante e tão polêmica feita por uma canetada do judiciário me parece ilegítima.

Por outro lado, ao ver tantas críticas às pessoas que estavam celebrando vitória, críticas que pretendem uma indignação por ter gente celebrando o direito de abortar fetos de 24 semanas, acho importante salientar que não me parece ser isso que tava sendo comemorado. O que foi descriminalizado é o direito ao aborto e isso que foi celebrado. O limite máximo de tempo, no caso 24 semanas, é um ponto secundário. O fato de alguém apoiar a descriminalização não significa que a pessoa aprove esse limite específico. Além disso, mesmo o limite sendo de 24 semanas, a mulher que quiser fazer um aborto poderá fazê-lo bem antes. É claro que a questão do limite de tempo é importante, e vou tratar dela mais adiante. Porém, acho importante definir quais são os fatos antes de ir pras opiniões.

Olhando para o tema de forma mais geral, pra além do caso colombiano, acho válido começar analisando sob a ética libertária. Quem acompanha meus escritos sabe de minha simpatia pelo libertarianismo, portanto, não podia deixar de analisar por essa ótica. O que o libertarianismo tem a dizer sobre aborto? Na minha opinião, bem pouco. É um caso do qual a ética libertária não dá conta. Os principais valores libertários são a liberdade e a propriedade, sendo a propriedade do próprio corpo, da própria vida, a mais essencial. Só que aí duas ideias de vida entram em conflito. Se pensarmos do ponto de vista do direito à vida do feto, o aborto seria um crime, mas, se por outro lado, pensarmos no direito a auto determinação da mulher sobre seu próprio corpo, sem o qual um feto não é viável, o aborto seria um direito básico da mulher, e ambas as decisões seriam coerentes com os princípios libertários. Ou seja, nesse caso a ética libertária desemboca num paradoxo. Então, tudo depende do que se entende por começo da vida e até que ponto se considera viável que uma vida possa depender de outra e ainda assim ser autônoma. Duas sociedades com valores e tradições diferentes poderiam ter leis opostas sobre aborto e ainda assim serem ambas libertárias. Pra resolver esse dilema, uma sociedade, libertária ou não, precisa recorrer a outras fontes para fundamentar suas decisões.

Uma fas fontes onde uma sociedade poderia buscar fundamento para tratar a questão do aborto é a religião. Sabemos que a maioria das religiões consideram a vida sagrada desde a concepção e portanto recriminam ou proíbem o aborto. Só que, numa sociedade laica, as decisões baseadas em critérios religiosos, deveriam ser deixadas para o livre arbítrio de cada indivíduo, não devendo ser matéria de lei.

Outra fonte de argumentação poderia ser a ética deontológica ou o utilitarismo. É bom ou ruim que nasçam crianças de pessoas que não desejam ser pais ou mães, que provavelmente não iriam cuidar bem desses filhos, os quais teriam maiores changes de se tornarem pessoas infelizes, despreparadas pra vida, talvez se tornassem criminosos ou seguissem outros caminhos que as levariam a se tornarem fardos para toda a sociedade? Por outro lado, permitir que embriões e fetos sejam eliminados por conveniência poderia levar uma sociedade a banalizar a vida, levando à normalização de outros comportamentos violentos ou destrutivos?

Outra fonte de sustentação às políticas sobre o tema é a ciência e a tecnologia. Se presumirmos que existe algum caso em que o aborto deva ser permitido, aí, temos de pensar sobre métodos, sobre impactos disso em políticas de saúde pública nos estados que as tem, sobre as responsabilidades dos profissionais de saúde nos procedimentos, e, sobretudo, no limite de tempo até quando o aborto é permitido, o que leva à discussão sobre a partir de que momento o embrião se torna um ser vivo autônomo, desde quando tem consciência ou sentimentos e por aí afora.

Se quisermos olhar pra questão do aborto de forma racional, outro aspecto que precisa ser enfrentado é a manipulação retórica que é amplamente usada tanto por quem milita a favor quanto por quem milita contra. Quem é contra costuma demonstrar indignação dizendo que abortistas estão querendo matar bebês de não sei quantas semanas. Mas, será que essas pessoas realmente pensam em embriões e fetos como bebês? Algum casal comemora o dia da concepção dos filhos? Ou preferem comemorar o aniversário de nascimento? Uma mãe que saia de casa com seu filho após um mês do nascimento, se alguém perguntar qual a idade dele, vai responder que ele tem 10 meses ou que ele tem 1 mês? Sabemos as respostas, então, pra bem da verdade, devemos admitir que toda nossa cultura só conta mesmo o bebê como uma pessoa autônoma depois que ele nasce.

Por outro lado, militantes pró direito de aborto, quando confrontados, as vezes se referem a embriões e fetos como amontoados de células. É fácil dizer isso sobre um feto genérico numa conversa abstrata, mas, quem é que se refere ao próprio feto, a um desejado futuro filho, como amontoado de células? Ninguém, né. Então, vamos combinar que, qualquer que seja nosso lado nesse debate, um embrião ou um feto é mais que células, tem todo um significado e uma simbologia na cultura e nos sentimentos humanos.

A verdade, a meu ver, é que todas as sociedades humanas entendem, mesmo que intuitivamente, que a individualidade não começa num único ponto do tempo, nem na concepção nem no nascimento. É um processo. As vezes começa até antes da concepção, com um casal planejando o futuro filho, construindo histórias que serão depois incorporadas à história do filho. Até o direito reconhece essa certa existência pré concepção ao permitir que se deixe em testamento doações pra futuros filhos. A concepção é, naturalmente, um passo muito importante do processo, mas, ainda assim, um passo. E então começa uma fase de formação, tanto biológica, com o embrião e depois o feto crescendo na barriga da mulher, quanto social e sentimental, com a ideia de um novo indivíduo se formando dentro da família e da comunidade. E esse processo evolui até o nascimento, até a separação dos corpos de mãe e filho e o surgimento de um indivíduo completo e autônomo.

Então, creio que todos os lados desse debate deveriam fazer um esforço para reconhecer que há esse aspecto de processo evolutivo na formação da individualidade e ver as opiniões contrárias a luz desse processo. Quase todo mundo, por exemplo, reconhece a possibilidade de aborto quando a vida da mulher está em risco. Ora, quase ninguém aceitaria que uma criança recém nascida fosse abatida para, de algum modo, salvar a vida da mãe. Então, se a pessoa admite aborto em caso de risco de vida da mulher, já admitiu que de algum modo uma criança é mais viva do que um feto. Por outro lado, até quem defende o direito de aborto em qualquer circunstância, dificilmente vai discordar de que um aborto de um embrião de 4 semanas é menos traumático do que o de um feto de 12 semanas.

Estabelecido esse contexto, me parece o momento de abordar a questão do tempo limite. Aí, me parece que o conhecimento da ciência e tecnologia médica vem a calhar, considerando tanto a formação do feto e de seu sistema nervoso quanto a saúde física e mental da mulher. Mas, também, cabe considerar questões culturais e sentimentais. Não somos máquinas, sentimentos e conceitos relativos à valorização ou banalização da vida também são importantes e tem impactos nos indivíduos e na sociedade. Me parece que é importante estabelecer limites de tempo que permitam à mulher tomar uma decisão bem pensada e ao mesmo tempo respeite a percepção média de valorização da vida.

Outra coisa que quem acompanha minhas ideias bem sabe é que, pra mim, a liberdade é muito importante, porém, anda lado a lado com outro conceito tão importante quanto, que é a responsabilidade. Cada posicionamento tem contrapartidas, que muitas vezes tendemos a esquecer, seja por distração ou por conveniência.

Se reconhecermos o direito da mulher de abortar, ou seja, de desistir de uma gravidez depois da concepção, então, por coerência, não podemos negar esse direito ao homem. Numa sociedade que reconheça o direto da mulher ao aborto, o homem também deveria ser livre para, uma vez informado da futura paternidade, decidir se vai assumi-la. Se a mulher esconder do homem a gravidez ou, sabendo da negativa dele, levar a gravidez adiante, deveria assumir sozinha as responsabilidades pelo filho. Mas, nesse caso, o filho estaria sendo punido pela divergência entre os pais? Creio que não. Ninguém pode escolher as circunstâncias do próprio nascimento. Temos que viver com o que somos.

Por outro lado, uma sociedade que proíba o aborto, que considere que embriões e fetos tenham o direito de se desenvolver e nascer independente da disposição e do desejo da mãe, assume para si a obrigação de cuidar dessa criança. De uma pessoa que se acha no direito de obrigar uma mulher a levar adiante uma gravidez indesejada, eu esperaria que essa pessoa se disponha a criar a criança como se dela fosse. Qualquer coisa menos que isso seria uma contradição.

Concluindo, minha percepção é de que se trata de um assunto bem complexo, com múltiplos aspectos e muitas variáveis sobre as quais as sociedades tem bem pouco controle. E nesses casos, minha convicção é de que o estado deve interferir o mínimo possível. Não há estado que seja muito bom em cuidar de gente, em abarcar suas complexidades biológicas, culturais e emocionais. Então, na dúvida, é melhor deixar que os indivíduos tomem suas próprias decisões e vivam com elas.

SOBRE MONARK, LIBERDADE E CANCELAMENTO

Nazismo é indefensável. Foi um movimento que promoveu de várias formas a violência, a perseguição, a morte, a guerra. Teve o fim que mereceu. Hitler está morto. Que fique morto. Não dá pra discutir nenhum tema atual usando como pano de fundo o nazismo. Tem grupelhos de nazistas ainda zumbizando por ai? Que continuem zumbis. Não quero saber deles. Não deixem que inimigos da liberdade tragam a conversa pro tema nazismo. É cilada.

Querem falar sobre violência, perseguição, xenofobia, segregação? Vamos olhar pro presente. Vamos discutir os casos que estão acontecendo agora, que podem ser revertidos, que merecem atenção de quem defende vida digna e liberdade para todo ser humano. Vamos falar da opressão vivida por uigures e tibetanos, da opressão que se abate sobre o povo de Hong Kong, das ameaças à liberdade de Taiwan, das ameaças à soberania da Ucrânia, do apartheid sanitário que vários governos do ocidente estão a impor a minorias de suas populações.

Não faltam ameaças à liberdade, não apenas de opinião e pensamento, mas, também à liberdade de movimentos em andamento agora em várias partes do mundo. E muita gente que arrota virtude condenando violências do passado fecham os olhos para as violências do presente ou mesmo defendem e apoiam os estados e pessoas que estão provendo perseguição, discriminação e massacre neste exato momento. Se você defende a liberdade, quando te cobrarem posicionamentos sobre o passado, traga a conversa pro presente e vamos ver quem realmente defende liberdade, democracia, dignidade, respeito, essas coisas todas.

E o Monark? Deu um vacilo. Foi massacrado pelos seus adversários e inimigos. É do jogo. Opto por ignorá-los. Foi também descartado por seus sócios. Também do jogo. Seus sócios fizeram uma escolha. Uma escolha ruim, acho, mas, feita no direito deles. Que se danem, não tenho muito a dizer sobre covardes. Torço para que o Monark comece um novo empreendimento e faça ainda mais sucesso e continue promovendo a liberdade e expressando suas opiniões livremente.

LÁZARO E OUTROS DILEMAS BRASILEIROS

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Eu tava evitando falar sobre a busca e execução do Lázaro porque é um tema tão escorregadio, que permite tantas análises distintas, que acaba sendo grande o risco de a gente se perder, cometer exageros ou injustiças com algumas das partes. Mas, alguns amigos disseram que gostariam de me ouvir a respeito, então, tentarei elaborar o que penso.

Eu tento organizar minha visão de mundo em quatro níveis de abstração. Tem o nível do ideal (como eu gostaria que um mundo fosse), o nível do bom (já que o ideal tá distante, qual a melhor forma de nos organizarmos e viver bem), o nível do razoável (quando nem o bom é possível, o que fazer pra encarar a realidade e lidar com os problemas) e, finalmente, o nível do dane-se (onde a gente apela, briga, xinga, e vai tomar uma cerveja pra relaxar que ninguém é de ferro). Acho que terei que passar por todos os níveis pra tentar dizer o que penso sobre esse caso do Lázaro.

No nível ideal esse caso sequer existiria. O Lázaro foi preso mais de uma vez antes por crimes diversos. Passou pela avaliação de psiquiatras forenses. Tava claro que ele era uma séria ameaça à segurança pública. Mas, por negligência ou ingenuidade ideológica (ou ambas) de alguns operadores do direito, essa ameaça foi devolvida à sociedade. Não defendo uma política de sair prendendo pessoas e jogando a chave fora. Mas, acredito que o mal existe, que tem pessoas que são caso perdido, que tem de ser contidas pelo bem dos demais. Uma sociedade bem organizada devia saber identificar e conter tais pessoas.

Mas, não vivemos no mundo ideal. Então, devíamos tentar pelo menos construir uma sociedade boa. E, nesse nível, uma pessoa que comete os crimes que o Lázaro cometeu devia ser presa, processada dentro da lei, e condenada a passar a vida toda na cadeia. E devia virar caso de estudo. Escolas deviam levar os jovens pra visitar cadeias, ver gente que vai passar a vida presa e conhecer dos seus crimes para saberem que, se forem pelo mesmo caminho, vão acabar tendo um destino semelhante.

Infelizmente, a maneira como as coisas funcionam no nosso país passa longe de ser boas. Temos leis severas para condutas inofensivas e leis brandas para crimes graves. Nosso sistema judiciário tá cheio de gente que estudou muito pra passar num concurso mas aprendeu pouco da realidade. O fato de esse criminoso ter passado várias vezes pelo sistema e voltado as ruas pra cometer mais crimes deixa claro que as soluções legais são bastante falhas. Então, não consigo lamentar porque esse criminoso foi morto e não preso. Entendo o alívio que muita gente deve ter sentido em saber que pelo menos esse não vai atacar mais. Entendo o policial que pensou “esse eu não terei de prender novamente”. Por outro lado, quando vejo um corpo sendo manejado de um carro pro outro como um saco de lixo, enquanto funcionários públicos comemoram e se felicitam, fico preocupado.

Aí, já estamos no nível do dane-se. E o dane-se deve acontecer num nível pessoal, nunca social. Eu posso compreender que um policial que passou semanas tensas caçando um criminoso, se arriscando, sofrendo pressões profissionais e sociais, fique feliz de que a missão foi cumprida, acabou. É humano. Posso entender se fragá-lo em sua casa socando o ar e celebrando. Porém, celebrar em público uma morte, mesmo que de um criminoso, manejar um corpo como saco de lixo diante das câmeras, e influenciadores e autoridades fazerem posts públicos exaltando o fato, me parece que passou do ponto.

Aquele corpo já foi uma pessoa, um filho de alguém, uma forma humana que lembra muitas outras. De quem se vê na necessidade de lidar com um corpo eu espero alguma compostura, algum respeito. De quem tem como profissão, fazer isso, além de compostura, espero profissionalismo. Se são funcionários públicos e autoridades, espero mais compostura e profissionalismo ainda.

Enfim, a impressão geral que levo desse episódio é que nos livramos de um criminoso, mas, também, emitimos mais um alerta de que estamos um tanto quanto perdidos em nossos ideias, valores e prioridades.

AUTOCRÍTICA LIBERAL

(Leitura: 5 min)

Por décadas, liberais, conservadores, direitistas e outras tribos que se opõem à visão de mundo dos socialistas vem acusando, com razão, o socialismo de ser um caminho inexorável para a pobreza e a miséria.

Esse era um argumento fácil. Bastava olhar para a Coréia do Norte, para os diversos países que saíram da influência soviética ávidos por capitalismo, para os cubanos cubanos famintos se lançando ao mar sob jangadas improvisadas tentando chegar a Miami, para os Venezuelanos fugindo pra Roraima.

Nos últimos anos isso mudou um pouco. O argumento continua sendo uma verdade estatística. Mas, sua verdade absoluta caiu. Como o método científico determina, basta um contra exemplo para negar uma tese. E agora temos o contra exemplo da China.

A ascensão da China deixou claro que é possível ser socialista e ser rico. A sensibilidade da economia mundial ao que acontece na China e a influência do governo chinês em tantas partes do mundo não deixam dúvida. Um país socialista pode se tornar não apenas rico, como também uma potência econômica mundial.

Nesse ponto, alguém deve estar dizendo: Mas, a China não é mais socialista de verdade, é socialista só no nome. Não devemos tomar esse caminho, sob pena de sermos hipócritas. Da mesma forma que criticamos os socialista que, confrontados com os desastres de outros países que tentaram o socialismo, respondem que não foi o socialismo de verdade, que a URSS ou qualquer outro projeto socialista fracassado desvirtuou o socialismo, seria ridículo clamar que a China não é o verdadeiro socialismo agora que ela é um sucesso pelo menos na economia. O controle do PCC sobre tudo que acontece na china continua absoluto. É socialismo sim.

Outra coisa que a China demonstrou é que socialismo não é o contrário de capitalismo. Empresas do mundo todo, nascidas e criadas sob regimes capitalistas, se sentem super confortáveis fazendo negócios com a China, se instalando no território chinês e se ajustando de bom grado aos controles sociais chineses. Empresas chinesas, capitaneadas pelo governo socialista, se expandem para o mundo e se adaptam sem constrangimentos ao modos operandi dos países capitalistas.

Então, tá na hora de admitir que o socialismo funciona? Creio que não. Tá na hora de admitir que ele nem sempre leva à pobreza e à miséria. Na maioria das vezes leva, sim. Os inventivos são todos errados, despertando o pior das pessoas. Mas, com alguns ajustes, e algumas circunstâncias favoráveis, pode vir a ser um sucesso econômico. Só que nem só de economia é feita uma sociedade.

O que a comparação dos países ocidentais com a China também prova é que uma sociedade aberta, moderna, civilizada, é muito mais do que economia. Uma sociedade civilizada envolve direitos civis, direitos políticos, possibilidade de pleitear direitos sociais, envolve liberdade de expressão e de organização, envolve estado de direito, instituições diversas que protejam os indivíduos contra o excesso de poder do estado. É em todos esses avanços civilizatórios conquistados nos últimos séculos pelas sociedades abertas ocidentais que devemos pensar ao lidar com a China e seu projeto de hegemonia do socialismo chinês.

A crítica ao socialismo precisa evoluir. Apontar a montanha de miséria produzida por quase todos os projetos socialistas é importante. Mas, é cada dia mais importante destacar o que o socialismo produz de violência, de segregação, de violação dos mais básicos direitos humanos. O contrário de socialismo não é capitalismo, é liberdade.

ELEIÇÕES MUNICIPAIS 2020

Minhas impressões sobre as eleições municipais:

PT e PSDB derreteram. A polarização entre esses dois partidos que dominaram a política brasileira por três décadas agoniza.

A esquerda está tentando encontrar seu novo eixo. A base eleitoral pra ela ainda existe. Falta liderança e rumo.

O bolsonarismo não soube transformar seu protagonismo no plano federal em influência local. Isso vai custar caro em 2022.

O grande vencedor foi o Centrão. Sua mistura de fisiologia e pragmatismo não deixa espaços vazios dando sopa.

O sucesso do Centrão indica que as narrativas mais ideológicas estão desgastadas. O eleitor médio tá cansado de ouvir falar de direita, esquerda, antifa, fascista, progressismo, conservadorismo e cia. Lacradores de ambos os lados fazem muito barulho mas tem pouco público.

O momento político do país é de muita fragmentação e pouco rumo. O caminho tá aberto para o surgimento de novas lideranças, novas causas, novos discursos e, por mais que eu não deseje, novos mitos.

VACINA IV

(Leitura: 3 min)

Em uma série de artigos anteriores sobre o tema, defendi o direito das pessoas decidirem individualmente se vão tomar as vacinas recém criadas para covid e a necessidade de campanhas governamentais de vacinação convencerem as pessoas ao invés de obrigá-las. Volto ao tema devido a acontecimentos recentes.

Como o presidente Bolsonaro andou defendendo a não-obrigatoriedade da vacinação, alguns entenderam meus artigos como uma defesa dele. Não são. Defendo o que acho certo, independente das companhias.

Ontem, a Anvisa suspendeu os testes com a vacina chinesa que vêm sendo conduzidos pelo Instituto Butantã devido à morte de um dos voluntários. O Butantã alegou que a morte não foi relacionada à vacina. Hoje, a Anvisa liberou a continuidade dos testes. Essa é uma questão técnica que deixo pras instituições envolvidas.

O que quero comentar é manifestação do presidente que, diante da suspensão dos testes, disse: “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.

Considero a declaração do presidente execrável. Ganha? Em que universo a morte de uma pessoa deve ser celebrada como ganho pra outra? Cadê o respeito pela vida? Onde ficou a dignidade humana? Mesmo que a morte tivesse sido causada pela vacina, qual o sentido de se comemorar o fracasso de uma tentativa de se combater uma doença mortal? Se preocupar com a origem da vacina em uma ditadura é válido. Criticar o uso político que um governador está fazendo do assunto é válido. Apontar o uso geopolítico que a China está fazendo da vacina é válido. Mas, celebrar o fracasso é lamentável sob qualquer aspecto. Esse conduta já seria terrível em um ser humano anônimo. Vinda do presidente do país, é bem pior, é um atestado de que ele não está à altura do cargo.

Diante disso, me resta o desejo cético de que a política brasileira produza lideranças alternativas que sejam viáveis e decentes.

VACINA III

(Leitura: 4 min)

A discussão se vacinas devem ou não serem obrigatórias é teórica, uma questão de princípios. Na prática, vai tomar quem quiser. E será a grande maioria. Não ficar doente costuma ser uma necessidade mais urgente do que defender princípios. A obrigatoriedade é parecida com a do voto, que é obrigatório na lei mas não é na prática.

O fato de a discussão ser teórica não a torna menos relevante. Princípios são importantes, ainda mais pra quem deseja que o hoje seja melhor do que o ontem e o amanhã melhor do que o hoje.

O que está em jogo nesse debate é o dilema entre o individual e o coletivo, entre a liberdade e a submissão. Se o governo pode injetar uma seringa no corpo da pessoa sem o consentimento dela, então, já não resta mais nem um mínimo de liberdade, não resta sequer soberania do indivíduo sobre o próprio corpo. Então, nos tornamos todos meras peças numa engrenagem maior sobre a qual não temos nenhum controle. Nos tornamos todos marionetes nas mãos de quem estiver no poder, de quem estiver no comando do estado. Nos tornamos uma sociedade de escravos.

Mas, Geraldo, é pelo bem dos próprios indivíduos… Então, convença-os. Ou deixe que eles enfrentem as consequências de suas decisões ruins. Não há liberdade sem o direito de ser tolo.

Mas, Geraldo, é pelo bem da coletividade… Se admitirmos que o governo pode violar os corpos de pessoas pacíficas pelo bem da coletividade, abrimos caminhos para uma séria de possibilidades sinistras. O bem coletivo é um conceito abstrato facilmente manipulável. Nunca existiu um tirano que não apelasse pra retórica do bem estar do povo.

E não nos esqueçamos que, se dermos ao governo o direito de controlar nossos corpos pelo suposto bem da coletividade, se dermos ao governo o direito de decidir o que vamos comer, beber ou injetar em nossos corpos, não há razão para esperarmos que vá parar aí. Se o governo sabe melhor do que nós o que é bom para nossos corpos, por que não saber também o que é melhor para nossas mentes? O próximo passo natural é controlar o que podemos ler, o que podemos ouvir, o que podemos ver e, finalmente, o que podemos pensar. Tudo pelo bem coletivo, é claro.

Já vimos esse filme outras vezes na história e sabemos onde esse caminho leva. Cabe a nossa geração decidir se queremos repetir os erros do passado.

BASE BOLSONARISTA

Bolsonaro rompe de vez com a Lava Jato. Alguns especulam que isso pode impactar sua base de apoio popular. Acho que impacta bem pouco. Segue o porquê.

O bolsonarismo foi erguido sobre três pilares. Combate à corrupção, liberalismo econômico e conservadorismo moral. Os três pilares contribuíram pra eleição do Bolsonaro. Mas, um é principal e dois são acessórios. Vamos ver mais de perto cada pilar.

O combate à corrupção foi o sopro que fez renascer a direita no Brasil. A direita tava hibernando deste o fim melancólico da ditadura militar. Tava envergonhada, com a cabeça enfiada na terra feito uma avestruz, mas, não tava morta. Boa parte do brasileiro médio sempre foi de direita. Só passou três décadas com vergonha de falar isso em voz alta.

A direita começou a renascer antes da Lava Jato. O primeiro ato que pôs o combate à corrupção na ordem do dia foi o Mensalão, que bateu direto no PT mas também resvalou no PSDB. A lava jato consolidou esse movimento. Os dois sabores de esquerda que mandavam no país foram arranhados. Os dois polos de poder político no país ficaram abalados. Tava aberto o espaço pra direita renascer. Bolsonaro e seu grupo estavam no lugar e hora certos pra ocupar esse espaço. O pilar do combate à corrupção botou o bolsonarismo de pé, mas, não é o que o sustenta.

O voto do pessoal revoltado com tanta corrupção ajudou Bolsonaro, mas, teve outro grupo importante. O pensamento liberal com foco na economia já vinha surgindo no Brasil desde os tempos do FHC e, nos últimos anos, ganhou razoável apelo popular em algumas camadas da população. Além de contar com o apoio de boa parte do empresariado. Em 2016, liberalismo reprentava voto e, principalmente, apoio econômico. O bolsonarismo soube cativar esse apoio também. E nem foi difícil, bastou colocar no barco o Paulo Guedes e dizer que ele teria liberdade pra fazer política econômica liberal. O liberais tinham que pagar pra ver, afinal, não tinham outro candidato viável mesmo. Mas, combate à corrupção e liberalismo econômico ainda não eram suficientes pra fazer um movimento vencedor. É aí que entra o terceiro pilar.

Uma boa parte dos brasileiros são conservadores, moralistas, do tipo que pode até sair escondido com um travesti, mas, não quer ver beijo gay na TV, pode até ter amante, mas, acredita firmemente na família tradicional. Pode não cumprir nenhum dos dez mandamentos, mas, se considera religioso à moda antiga. As diversas iniciativas recentes que tentaram reformar a sociedade brasileira na marra, notadamente no governo petista, deixaram esse pessoal no limite. Estavam prontos para reagir. O bolsonarismo deu a eles o meio e a oportunidade.

Somou-se a esse pilar da moral o pessoal que despreza qualquer conversa sobre aborto e o pessoal que se assusta com qualquer conversa sobre relaxamento da repressão às drogas. Se sentiu representado também o pessoal que não aguenta mais os exageros da militância ambientalista. E o bloco foi engrossando.

Por fim, esse pilar também foi reforçado por muita gente cansada de ser assaltada, sequestrada e estuprada e ver o estado se preocupar mais com os direitos dos criminosos do que com o direito das vítimas. Por muita gente que desistiu de esperar segurança do estado e quer se defender por conta própria. Todos esses grupos que se sentem vítimas das transformações sociais das últimas décadas tornaram o pilar da moral conservadora robusto o bastante para ser a força de sustentação do bolsonarismo. Isso somado aos pilares auxiliares do combate à corrupção e do liberalismo econômico, botaram o bolsonarismo no poder.

O pilar de sustentação, que mais encontra eco na população brasileira, é o conservadorismo moral. É por isso que o bolsonarismo pode se dar ao luxo de mandar o Moro pra oposição e decretar a morte da Lava Jato. É por isso que podem fritar o Paulo Guedes em fogo brando. Mesmo que os economistas liberais saiam todos do governo o pilar principal continua de pé. As pessoas que sustentam o pilar principal podem até ficarem chateadas com alguma concessão do governo ao centrão, mas, continuarão fiéis. Elas não têm outra opção viável e sabem que não terão tão cedo. Enquanto o discurso de Bolsonaro for favorável à proibição do aborto, à repressão às drogas, ao combate à ideologia de gênero e ao direito de defesa, estarão com ele.

O enfraquecimento dos pilares do combate à corrupção e do liberalismo econômico causam algum desgaste ao bolsonarismo. Mas, isso pode ser compensado com populismo, com políticas de assistência social que tragam pro bolsonarismo outro público, uma massa de miseráveis que nas últimas décadas se especializaram em viver de ajudas governamentais.

Talvez, esse rearranjo seja suficiente para garantir que o bolsonarismo continue sendo uma força dominante. Talvez não. Creio que isso vai depender também dos demais atores políticos do país e seus movimentos. Uma coisa é certa, sem graça nosso futuro político não será.

LAGOSTAS

Quem pode come, quem não pode não come.” – Jair Bolsonaro, em 1-Out-2020, sobre lagostas bancadas por dinheiro público.

Se você é pagador de impostos e ainda está fechado com esse presidente, suspeito que você tem um lado masoquista.

MAIORIAS, MINORIAS E DEMOCRACIA LÍQUIDA

(Leitura: 25 min)

1. UM POUCO DE HISTÓRIA

Recentemente escrevi sobre maiorias silenciosas e minorias barulhentas. Um colega comentou que a ordem institucional no Brasil e no mundo muitas vezes representa mais as minorias do que a maioria. Aproveitando a proximidade de mais uma eleição, proponho refletirmos sobre como a democracia representativa tende a superestimar os interesses das minorias mais organizadas e barulhentas e menosprezar a vontade da maioria silenciosa, e sobre como seria possível mitigar essa tendência.

Primeiro, vamos considerar o plano internacional. Aí, não parece haver muito que se possa fazer, já que as relações entre países, por mais que formas de governança planetária tenham sido ensaiadas nas últimas décadas, ainda são mais anárquicas do que democráticas. No entanto, os líderes e representantes que atuam em nome de seus países são eleitos democraticamente por seus respectivos povos, pelo menos nos países democráticos. Então, mesmo que as relações internacionais não sejam formalmente democráticas, serão tão mais democráticas quanto mais democráticas forem as escolhas dos representantes de cada país. É aí, no plano interno de cada país, que há muito espaço para melhoria da representatividade. E é sobre isso que quero refletir, considerando principalmente o cenário brasileiro, afinal, eu sou brasileiro, pretendo continuar vivendo aqui e acredito que, por mais que as experiências de outros países sirvam de exemplos e de aprendizado, precisamos encontrar soluções nossas para nossos próprios problemas.

A democracia representativa começou a tomar forma no século XVII e se consolidou no século XVIII, notadamente a partir da formação dos Estados Unidos da América. Houveram sociedades democráticas anteriores, como a Grécia antiga entre outros exemplos, mas, foram experiências muito diferentes e em escala muito menor. O formato de democracia que conhecemos e usamos hoje nasceu no século XVIII. É preciso reconhecer que para aquela época foi um avanço civilizatório magnífico. Desde então, mais de dois séculos já se passaram. A existência humana passou por consideráveis transformações materiais, sociais e culturais. As tecnologias que usamos hoje pareceriam mágica para muita gente daquela época; Discriminações entre as pessoas se tornaram intoleráveis. A velocidade das comunicações transformou o planeta numa aldeia global. Queiramos ou não, vivemos rodeados pelos barulhos dos vizinhos. No entanto, a democracia inventada naquela época não mudou quase nada. Continuamos votando apenas de quatro em quatro anos para escolher representantes que irão exercer poder pelos anos seguintes, teoricamente, em nome dos eleitores. Porém, enquanto os eleitores voltam para casa e só irão se manifestar novamente quatro anos depois, os eleitos agem como donos do país, do estado ou da cidade, respondendo apenas a grupos que consigam se organizar e incomodá-los continuadamente.

No século XVIII esse modelo fazia todo sentido. A população de Massachussets, por exemplo, levava dias para seu reunir e eleger alguns representantes que, por sua vez, iriam levar dias até chegar a Washington e se reunir a outros representantes do resto do país e tomar decisões. Qualquer decisão tomada pelo governo na capital irar levar dias, talvez semanas, para ser conhecida no território todo. Qualquer projeto aprovado iria levar meses, talvez anos, para ser implementado e afetar a vida de todos os cidadãos do país. Não dava pra imaginar coisa mais viável e democrática do que a eleição de representantes. Hoje, quando uma decisão tomada na Casa Branca se torna imediatamente conhecida não só em todo território americano, mas, em todo canto do planeta em segundos, afetando a vida de gente no nundo todo instantaneamente, será que ainda faz sentido continuarmos usando o mesmo modelo de representação?

2. LIMITES DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

E há outros problemas. No Brasil, por exemplo, sempre que um governante federal se vê diante de resistências aos seus projetos ou ameaçado por impeachment, costuma esbravejar: Eu foi eleito por tantos milhões de eleitores, a vontade desses eleitores tem de ser respeitada! Ora, foi eleito por tantos milhões de eleitores há um, dois ou três anos atrás. Será que se os eleitores fossem consultados agora votariam do mesmo jeito? Não sabemos e não é viável organizar uma eleição nacional a cada mês para perguntar-lhes. Da mesma maneira, sempre que um grupo de interesse consegue botar algumas centenas de milhares de pessoas nas ruas das capitais do país defendendo alguma causa, já vêm logo com aquela prosa tipo: A opinião pública está a nosso favor! Será? O que significa algumas centenas de milhares de militantes barulhentos diante de dezenas de milhões de eleitores? Será que a maioria dos eleitores se sentem representados? Hoje, não há como saber. Pode se fazer pesquisas usando tecnologias estatísticas que permitem captar de forma aproximada a opinião média, mas, sempre haverá margem de erro e nem todos vão confiar nas instituições que realizam as pesquisas. Não é, portanto, um meio oficialmente válido de aferir a vontade dos eleitores.

Há ainda as recorrentes suspeitas de fraudes em eleições e a impossibilidade de se auditar uma eleição de ponta a ponta na democracia representativa, devido ao fato de o voto ser secreto. Pode-se partir do total de votos e rastrear cada voto até a urna da qual ele saiu, mas, nunca se poderá chegar até o eleitor para perguntar se ele realmente votou naquele candidato. Mesmo que se implemente impressão dos votos, o rastreamento até o eleitor continuará impossível e, portanto, não se pode falar em um sistema totalmente auditável.

O que pode ser feito, então? Na minha opinião, a democracia representativa já cumpriu o seu papel. Seu tempo histórico já se foi. Nosso tempo, nosso modelo de sociedade, nosso modo de vida tecnológico demanda um novo modelo de democracia. Que seja confiável e auditável; que garanta um vínculo permanente entre eleitor e eleito, de modo que o eleitor seja efetivamente representado no poder; e que seja dinâmico o suficiente para responder às mudanças nas circunstâncias, no comportamento do eleito e na vontade do eleitor.

Se alguém leu até aqui talvez esteja pensando em democracia direta ou semi-direta. Não tô falando de democracia direta. Seria impossível colocar toda a população brasileira na praça dos três poderes para deliberar sobre alguma coisa como se estivesse numa ágora grega. Poderia se implementar voto online, mas, não seria suficiente. A quantidade de decisões que são tomadas todos os dias em qualquer parlamento e em qualquer governo demanda gente especializada e com muito tempo dedicado. Além disso, qualquer pessoa que já tentou administrar uma um boteco ou uma república de estudantes sabe que não se resolve nada com um bando de gente falando ao mesmo tempo. É preciso estrutura, delegação de tarefas, divisão do trabalho, enfim, decisões coletivas e administração de interesses comuns é complexo e demanda organização e pessoas capacitadas. Democracia direta não é viável nem em escala municipal, muito menos estadual ou nacional. Já a democracia semi-direta (plebiscitos, referendos, iniciativa popular e recall) é interessante e tem suas aplicações, mas, nem passa perto de resolver os problemas essenciais da democracia representativa.

3. APRESENTAÇÃO DE UM NOVO MODELO

O que eu proponho então? Creio que está na hora de começarmos a pensar seriamente na democracia líquida. O que é isso? É um conceito relativamente novo, que vem sendo desenvolvido por grupos diversos ao redor do mundo. Não é uma fórmula pronta e acabada, mas, um conjunto de idéias e propostas que podem levar à construção de um modelo democrático muito mais adaptado ao nosso tempo. Não vou esgotar o tema. Isso estaria muito além da minha capacidade e do escopo desse post. Quem tiver interesse dá um google em “democracia líquida” e vai achar muita informação. Eu vou apenas propor algumas idéias relacionadas ao tema que me parecem pertinentes e sobre as quais convido as pessoas a pensar a respeito.

O ponto que eu acho essencial é mudar a relação entre o eleitor e o eleito. Chega de dar poder a alguém e vê-lo dono de nosso destino por quatro longos anos. O eleito não deve ser dono do voto do eleitor, deve ser um procurador. Quando estabelecemos um procurador para nos representar (um advogado, por exemplo) ele só nos representa enquanto estivermos satisfeitos com o trabalho que ele está fazendo. Se perdemos a confiança no trabalho dele, seja por duvidar de sua competência ou de sua honestidade, demitimos ele e contratamos outro. Nossa relação com um político tem de ser a mesma. Temos de ter meios de dar o voto e retirar o voto a qualquer momento. Dá pra implementar isso? Com a tecnologia que já temos disponível hoje, dá. O TSE (ou outro órgão mais adequado, mas, isso já é outro assunto) constrói um sistema no qual todo eleitor pode, a qualquer momento, se conectar usando um computador ou um celular e escolher seu representante em qualquer instância política, seja a câmara municipal, a prefeitura, a assembléia estadual, o governo do estado, a câmara federal, o senado ou a presidência da república. Mas, isso é seguro? Ora, a maioria de nós faz algo semelhante pra acessar nosso banco e fazer transações com nosso dinheiro, por que não fazer com o voto? E as pessoas que não tem acesso ou não sabem lidar com tecnologia? A justiça eleitoral pode manter quiosques disponíveis para elas em locais acessíveis, com telas bem simples, de tal modo que qualquer pessoa que use uma urna eletrônica hoje consiga usar o novo sistema. A demanda por estes quiosques seria pequena e decrescente.

E como funcionaria isso? Os partidos escolheriam seus candidatos, que se registrariam no sistema e se tornariam votáveis. Candidatos avulsos também seriam bem vindos. As candidaturas poderiam ser registradas a qualquer tempo. A votação seria contínua. O eleitor tanto poderia escolher um representante para um cargo para o qual ele ainda não escolheu nenhum quanto trocar uma escolha anterior por um novo nome.

E como vamos saber quem ganhou, quem efetivamente assume os cargos? Imagino modelos ligeiramente diferentes para eleições legislativas e executivas. No legislativo, toma-se o número total de eleitores que votaram e divide-se pelo número de integrantes que queremos na casa legislativa. Quem representar pelo nenos o número mínimo de votos, assume uma cadeira. Vejamos um exemplo com base nos números aproximados da eleição pra Assembléia Estadual de Minas em 2018. Tivemos 10 milhões de votos e 77 vagas de deputado pra preencher. Desse modo, teríamos 10 milhões divididos por 77 igual a, arredondando, 130 mil. Ou seja, quem representasse 130 mil eleitores teria uma cadeira na assembléia. Alguns talvez tivessem mais votos do que isso. Por isso, creio que seria importante que o voto de cada parlamentar tivesse peso proporcional à quantidade de eleitores que ele representa. E os votos que foram para candidatos que não obtiveram os 130 mil votos? Aí, haveriam duas opções. Uma opção que o eleitor teria é mudar seu voto para outro candidato que parecesse lhe representar quase tão bem quanto e, assim, mais candidatos iriam chegando ao mínimo de 130 mil votos. A segunda opção, e aí entramos em outra característica interessante da democracia líquida, seria a delegação de votos. Da mesma forma que um eleitor delega seu voto a um representante, um representante pode também delegar seus votos pra outro. Se o José obteve 50 mil votos, ele não conseguirá uma cadeira, mas, ele pode chegar a um acordo com a Maria, colega que defende ideias e propostas semelhantes às dele, que obteve 90 mil votos e também não conseguiu sua cadeira, e delegar seus votos para ela, de modo que agora Maria terá 140 mil votos e conseguirá sua cadeira, ficando os eleitores de Maria e de José agora representados na câmara. Ora, mas, aí, não iria descambar pra compra e venda de votos, pra acordos entre candidatos que não tem qualquer semelhança a não ser o desejo de obter algum poder? Não creio. Lembrem-se que o voto é dinâmico, a votação é contínua, o eleitor pode mudar o voto a qualquer momento. Se o eleitor de José não se sentir representando por Maria, o acordo entre os dois não vai durar nada. No dia seguinte os eleitores de José mudam seus votos para outro candidato ou pra nenhum, a representatividade de José cai de 50 mil pra meia duzia de votos e Maria perde novamente sua cadeira na câmara. A delegação de votos só é efetiva se os eleitores se sentirem representados por ela.

No executivo suponho que teria de ser um pouco diferente. Como há só uma vaga e é necessário uniformidade de atuação do governo, nem todos os eleitores poderão ser representados, terá de haver governo e oposição. Porém, é desejável que o governo represente o máximo possível de eleitores. Imagino um modelo em que, para assumir o governo, um candidato ao executivo precisa representar dois terços do eleitorado. Pra isso, além de seus próprios votos, ele pode fazer coalização com outros candidatos e obter delegação de votos (conceito explicado acima quando falamos da eleição parlamentar). E se ninguém conseguir os dois terços? Continua-se as negociações entre os candidatos detentores de soma significativa de votos, ao mesmo tempo em que os eleitores podem se manifestar mudando sues votos, até que se chegue a uma coalizão viável. Enquanto isso o governo é exercido pelo executivo anterior ou, na falta dele, pelo chefe do legislativo com poderes limitados. Só que, no caso do executivo, diferentemente do legislativo, é preciso haver critérios distintos para ganhar a cadeira e para perder a cadeira. Imagine o seguinte cenário: Dia 1: um candidato João consegue os dois terços do votos e assume; Dia 2: 1% dos eleitores mudam de ideia, o João perde o cargo; Dia 3: um candidato obscuro que tem 1% dos votos adere ao João, o João assume de novo; e assim por diante. Não dá. Nenhum governo funcionaria com essa instabilidade. Imagino que, uma vez que alguém assume o cargo, teria que ter algum tempo e tranquilidade para montar um governo e implementar seus planos. Penso que um bom critério para um chefe do executivo perder o cargo seria sua base eleitoral baixar de dois terços para menos de um terço. Então, se o governo começasse a ir mal, veríamos eleitores retirando seu voto ou mudando seu voto pra candidatos de oposição. A princípio isso seria um movimento esperado pelo governo. Ninguém consegue agradar a todos. Porém, se a insatisfação fosse grande, a ponto de menos de um terço dos eleitores continuar apoiando o governo, ele perderia automaticamente o cargo e o processo de formação de um novo governo começaria. Além disso, saberíamos, o tempo todo, a qualquer momento, qual a real representatividade de um governante.

4. DESAFIOS E POSSIBILIDADES

A essa altura, talvez vocês estejam pensando que esse sistema seria muito instável, com políticos assumindo e caindo o tempo todo. Eu acredito que no início seria meio instável mesmo. Mas, com o passar do tempo, as pessoas se acostumariam com o modelo. Os políticos se veriam obrigados a cassar votos fazendo propostas factíveis, afinal, não durariam muito se traíssem seus compromissos e também aprenderiam a representar melhor os eleitores, que estariam de olho e teriam poder para avaliá-los de fato o tempo todo. Os eleitores se veriam obrigados a votar com mais responsabilidade e acompanhar a atuação de seus representantes. O sistema acharia um equilíbrio.

Agora, precisamos tratar do que, a meu ver, é o principal prolema desse modelo. O voto teria que ser aberto. Seria muito difícil de manter a segurança e integridade de um sistema desses se os votos fossem secretos. Existem soluções tecnológicas para votações online e secretas, mas, não creio que seriam suficientes. Um sistema de votação continuada, com mudança de votos a qualquer tempo, com delegação de votos, seria impossível de ser mantido íntegro e seguro sem auditoria de uma ponta a outra. Seriam inevitáveis votos sumirem aqui e aparecerem acolá. Só voto aberto daria conta.

Mas, acabar com o voto secreto seria mesmo um problema? Vejamos. A ideia de votação secreta fazia todo sentido numa época de famílias patriarcais, coronelismo, currais eleitorais e outras relações sociais de subordinação violenta ou opressiva. Mas, atualmente, com o grau de liberdade individual e garantias fundamentais que experimentamos, me parece razoável que cada um faça suas escolhas políticas livremente e assuma responsabilidade por elas. Talvez o voto aberto ainda possa ser problemático em favelas controlados por traficantes ou milícias, mas, vamos pensar francamente: com toda a ausência de direitos básicos e proteção do estado que tais comunidades enfrentam, a dificuldade de exercer os direitos políticos está longe de ser o maior dos problemas.

Alguém deve estar se lembrando que a Constituição de 88 define como cláusula pétrea o “o voto direto, secreto, universal e periódico”. É verdade. Mas, também é verdade que a constituição possui normas principiológicas, que devem ser interpretadas à luz do desenvolvimento presente da sociedade brasileira, como é fartamento exemplificado pelos acórdãos e súmulas do STF em diversos temas, e também é verdade que muita coisa mudou na nossa sociedade entre 1988 e o momento atual. Pretendo demonstrar que o que proponho não ofende de modo algum a essência do artigo 60 acima citado. Primeiro, o voto deve ser direto, o que significa que cada voto deve ter o mesmo peso. O sistema que proponho torna o voto ainda mais direto, então, não vejo problema aqui. Segundo, o voto deve ser universal, isto é, todos devem ter direito a votar sem discriminações. Não se mexe nisso. Terceiro, o voto deve ser periódico. Aqui, pode haver algum problema de interpretação. Alguém pode argumentar que a possibilidade de voto contínuo que proponho não é voto periódico. Acredito que no voto contínuo apenas se reduz o período a um tempo bem pequeno, não mudando a essência da ideia, que é a possibilidade de o eleitor reavaliar seus representantes com alguma frequência. Pelo contrário, a democracia líquida aumenta muito essa possibilidade. Por fim, vamos examinar a questão do voto secreto. Acredito que a essência dessa norma, quando colocada pelo legislador em 1988, era a necessidade de garantir que o eleitor não será perturbado ao exercer seus direitos políticos, que será livre para escolher quem lhe representa, que não será compelido por qualquer força exterior à sua autonomia individual a votar contra sua própria vontade. E acredito também que o sistema que proponho cumpre essa necessidade essencial melhor que o voto secreto. O eleitor terá a garantia de poder exercer seu voto. Nenhum contratempo poderá impedir que o eleitor vote, afinal, se ele não conseguir fazê-lo hoje, poderá fazê-lo amanhã com a mesma eficácia. Se for compelido de algum modo a votar diferente de sua vontade, poderá corrigir seu voto a qualquer momento futuro, além de poder procurar a polícia e/ou a justiça para punir o constrangimento ilegal de que foi vítima. Além disso, terá a garantia de que não foi vítima de qualquer tipo de fraude, posto que poderá, a qualquer tempo, conferir se seu voto está corretamente registrado no sistema e alterá-lo se desejar. Assim, sendo, acredito que em um sistema de democracia líquida, a liberdade de exercer os direitos políticos que a Constituição de 88 quis resguardar não só estará garantida, como estará sendo levada a um patamar mais avançado, não podendo, portanto, se falar em inconstitucionalidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Então tá tudo resolvido, bora por pra funcionar? Acho que não. Acredito que mudanças impactantes devem ser feitas com cautela, tão gradualmente quanto possível. Também é importante testá-las em pequena escala, avaliar os resultados, ajustar o que for necessário e ir aumentando a escala na medida que os diversos envolvidos forem ganhando confiança na novidade. Creio que o ideal seria fazer projetos pilotos em algumas cidades em regiões variadas do país, onde a população aprovasse previamente a experiência através de plebiscito. Poderia se testar modelos distintos em cada cidade para se verificar quais características do modelo funcionam melhor na prática. Quado tivermos um modelo estável no nível municipal, vamos pro nível estadual e assim por diante.

Finalmente, acho importante salientar que este post não pretende ter rigor acadêmico ou jurídico. Pretende apenas lançar uma ideia, fomentar o debate sobre um tema que acredito ser relevante para nosso país, para quaisquer sociedade livre e para a própria ideia de democracia.