LÁZARO E OUTROS DILEMAS BRASILEIROS

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Eu tava evitando falar sobre a busca e execução do Lázaro porque é um tema tão escorregadio, que permite tantas análises distintas, que acaba sendo grande o risco de a gente se perder, cometer exageros ou injustiças com algumas das partes. Mas, alguns amigos disseram que gostariam de me ouvir a respeito, então, tentarei elaborar o que penso.

Eu tento organizar minha visão de mundo em quatro níveis de abstração. Tem o nível do ideal (como eu gostaria que um mundo fosse), o nível do bom (já que o ideal tá distante, qual a melhor forma de nos organizarmos e viver bem), o nível do razoável (quando nem o bom é possível, o que fazer pra encarar a realidade e lidar com os problemas) e, finalmente, o nível do dane-se (onde a gente apela, briga, xinga, e vai tomar uma cerveja pra relaxar que ninguém é de ferro). Acho que terei que passar por todos os níveis pra tentar dizer o que penso sobre esse caso do Lázaro.

No nível ideal esse caso sequer existiria. O Lázaro foi preso mais de uma vez antes por crimes diversos. Passou pela avaliação de psiquiatras forenses. Tava claro que ele era uma séria ameaça à segurança pública. Mas, por negligência ou ingenuidade ideológica (ou ambas) de alguns operadores do direito, essa ameaça foi devolvida à sociedade. Não defendo uma política de sair prendendo pessoas e jogando a chave fora. Mas, acredito que o mal existe, que tem pessoas que são caso perdido, que tem de ser contidas pelo bem dos demais. Uma sociedade bem organizada devia saber identificar e conter tais pessoas.

Mas, não vivemos no mundo ideal. Então, devíamos tentar pelo menos construir uma sociedade boa. E, nesse nível, uma pessoa que comete os crimes que o Lázaro cometeu devia ser presa, processada dentro da lei, e condenada a passar a vida toda na cadeia. E devia virar caso de estudo. Escolas deviam levar os jovens pra visitar cadeias, ver gente que vai passar a vida presa e conhecer dos seus crimes para saberem que, se forem pelo mesmo caminho, vão acabar tendo um destino semelhante.

Infelizmente, a maneira como as coisas funcionam no nosso país passa longe de ser boas. Temos leis severas para condutas inofensivas e leis brandas para crimes graves. Nosso sistema judiciário tá cheio de gente que estudou muito pra passar num concurso mas aprendeu pouco da realidade. O fato de esse criminoso ter passado várias vezes pelo sistema e voltado as ruas pra cometer mais crimes deixa claro que as soluções legais são bastante falhas. Então, não consigo lamentar porque esse criminoso foi morto e não preso. Entendo o alívio que muita gente deve ter sentido em saber que pelo menos esse não vai atacar mais. Entendo o policial que pensou “esse eu não terei de prender novamente”. Por outro lado, quando vejo um corpo sendo manejado de um carro pro outro como um saco de lixo, enquanto funcionários públicos comemoram e se felicitam, fico preocupado.

Aí, já estamos no nível do dane-se. E o dane-se deve acontecer num nível pessoal, nunca social. Eu posso compreender que um policial que passou semanas tensas caçando um criminoso, se arriscando, sofrendo pressões profissionais e sociais, fique feliz de que a missão foi cumprida, acabou. É humano. Posso entender se fragá-lo em sua casa socando o ar e celebrando. Porém, celebrar em público uma morte, mesmo que de um criminoso, manejar um corpo como saco de lixo diante das câmeras, e influenciadores e autoridades fazerem posts públicos exaltando o fato, me parece que passou do ponto.

Aquele corpo já foi uma pessoa, um filho de alguém, uma forma humana que lembra muitas outras. De quem se vê na necessidade de lidar com um corpo eu espero alguma compostura, algum respeito. De quem tem como profissão, fazer isso, além de compostura, espero profissionalismo. Se são funcionários públicos e autoridades, espero mais compostura e profissionalismo ainda.

Enfim, a impressão geral que levo desse episódio é que nos livramos de um criminoso, mas, também, emitimos mais um alerta de que estamos um tanto quanto perdidos em nossos ideias, valores e prioridades.

COMÉRCIO DE CORPOS

Penso que é bastante evidente a razão pela qual o Direito Civil não admite a venda de órgãos humanos e a locação do útero, muito embora permita a doação daqueles e a cessão gratuita de uso deste.Trata-se de colocar limite à exploração econômica de um ser humano sobre o outro. Quem doa um rim ou gera um filho no lugar de outra pessoa, age por generosidade e não por necessidade. Admite-se o sacrifício, só por ter nascido da máxima liberdade.Para obter o necessário, para comprar comida, para pagar pela moradia, para sustentar os filhos, o Direito admite que as pessoas trabalhem, mas não que entreguem partes de seu corpo.E ao admitir que trabalhem, faculta-se-lhes abandonar o trabalho no dia em que assim o desejarem. Mas não pode tolerar que alguém limite tão dramaticamente sua liberdade, pelo período aproximado de nove meses, e isso para obter o sustento.Se há abusos no mercado de trabalho, o certo é combater os abusos e não ampliar o mercado para que passe a abranger outras dimensões da vida.Argumenta-se que de nada adianta proibir se essas coisas acontecem. Ora, adianta e muito. O Direito não está obrigado a ceder ante a realidade. Em alguns casos, como nesse, deve afrontá-la. Dele se espera que aponte o caminho e jamais que empreste sua força para confirmar as tragédias humanas.Quem leu “Os Miseráveis”, o magnífico romance de Victor Hugo, deve se lembrar da pobre Fantine vendendo os próprios dentes, um a um, para sustentar a filha pequena.Não gostaria que o Direito Civil brasileiro chegasse a esse ponto.Mas há quem pense de outro modo. Para Rodrigo da Cunha Pereira:“O corpo é um capital físico, simbólico e econômico. Os valores atribuídos a ele são ligados a questões morais, religiosas, filosóficas e econômicas. Se a gravidez ocorresse no corpo dos homens, certamente o aluguel da barriga já seria um mercado regulamentado. Não seria a mesma lógica que permite remunerar o empregado no final do mês pela sua força de trabalho, despendida muitas vezes em condições insalubres ou perigosas, e considerado normal? O que se estaria comprando ou alugando não é o bebê, mas o espaço (útero) para que ele seja gerado. Portanto, não há aí uma coisificação da criança ou objetificação do sujeito. E não se trata de compra e venda, como permitido antes nas sociedades escravocratas e endossado pela moral religiosa. Para se avançar, é preciso deixar hipocrisias de lado e aprender com a História para não se repetir injustiças. É preciso distinguir o tormentoso e difícil caminho entre ética e moral” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha, “Direito das Famílias”. Rio de Janeiro: Forense, 2020).” – Giordano Bruno Soares Roberto

Questão interessante. Me parece haver bastante diferença entre os dois casos analisados.Na questão da barriga de aluguel, tendo a concordar com o Rodrigo. Pode ser visto como uma prestação de serviço. Porém, isso levaria a outras questões polêmicas. E se a mulher resolvesse desistir do contrato no meio do caminho? Seria permitido o aborto? Resolveria em perdas e danos? Ou ela seria obrigada a levar o contrato até o fim? Ai viraria uma espécie de escravidão?Já na questão da venda de órgãos tendo a concordar com você. Não é serviço nem tão pouco produto. Órgãos não é algo que alguém consiga produzir. A pessoa nasce com eles e não tem sobressalente. O pedaço vendido iria quase que fatalmente abreviar a vida do vendedor. Sei que é uma questão moral. Talvez seja uma questão de empatia. O fato é que não consigo achar aceitável a venda de órgãos que não se regeneram. Venda de partes que se regeneram, como cabelo, unha, sangue, daí, me parece aceitável sem problemas.

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