COLOMBIA, ABORTO E LIBERDADE

(Leitura: 15 min)

Nesta semana, o tema aborto ganhou as machetes devido à uma decisão da Corte Constitucional da Colômbia, a Suprema Corte deles, que descriminalizou quaisquer abortos realizados até 24 semanas de gestação. Antes disso, o aborto era criminalizado lá, exceto em casos de estupro ou mal formação fetal, bem semelhante a como é hoje no Brasil. Em meio a reações emocionais contra e a favor, desejo oferecer uma reflexão o mais racional possível.

Vamos começar analisando o caso específico da Colômbia. A primeira coisa que chama atenção é que a mudança foi feita por uma decisão da Suprema Corte, contrariando as leis do país. Isso é lamentável. Corrobora uma perigosa tendência no Ocidente de o Judiciário fazer leis. Sem ainda entrar no mérito da decisão, numa democracia, mudanças legislativas deveriam ser feitas pelo parlamento, onde estão os representantes eleitos pelos cidadãos. Por mais que os parlamentos tenho defeitos, ali, as leis são debatidas abertamente, dentro de um processo previsível, com espaço para manifestações da sociedade. Não se inventou ainda jeito melhor de legislar. O papel do judiciário é aplicar as leis, não decretá-las ou modificá-las. Portanto, uma mudança tão importante e tão polêmica feita por uma canetada do judiciário me parece ilegítima.

Por outro lado, ao ver tantas críticas às pessoas que estavam celebrando vitória, críticas que pretendem uma indignação por ter gente celebrando o direito de abortar fetos de 24 semanas, acho importante salientar que não me parece ser isso que tava sendo comemorado. O que foi descriminalizado é o direito ao aborto e isso que foi celebrado. O limite máximo de tempo, no caso 24 semanas, é um ponto secundário. O fato de alguém apoiar a descriminalização não significa que a pessoa aprove esse limite específico. Além disso, mesmo o limite sendo de 24 semanas, a mulher que quiser fazer um aborto poderá fazê-lo bem antes. É claro que a questão do limite de tempo é importante, e vou tratar dela mais adiante. Porém, acho importante definir quais são os fatos antes de ir pras opiniões.

Olhando para o tema de forma mais geral, pra além do caso colombiano, acho válido começar analisando sob a ética libertária. Quem acompanha meus escritos sabe de minha simpatia pelo libertarianismo, portanto, não podia deixar de analisar por essa ótica. O que o libertarianismo tem a dizer sobre aborto? Na minha opinião, bem pouco. É um caso do qual a ética libertária não dá conta. Os principais valores libertários são a liberdade e a propriedade, sendo a propriedade do próprio corpo, da própria vida, a mais essencial. Só que aí duas ideias de vida entram em conflito. Se pensarmos do ponto de vista do direito à vida do feto, o aborto seria um crime, mas, se por outro lado, pensarmos no direito a auto determinação da mulher sobre seu próprio corpo, sem o qual um feto não é viável, o aborto seria um direito básico da mulher, e ambas as decisões seriam coerentes com os princípios libertários. Ou seja, nesse caso a ética libertária desemboca num paradoxo. Então, tudo depende do que se entende por começo da vida e até que ponto se considera viável que uma vida possa depender de outra e ainda assim ser autônoma. Duas sociedades com valores e tradições diferentes poderiam ter leis opostas sobre aborto e ainda assim serem ambas libertárias. Pra resolver esse dilema, uma sociedade, libertária ou não, precisa recorrer a outras fontes para fundamentar suas decisões.

Uma fas fontes onde uma sociedade poderia buscar fundamento para tratar a questão do aborto é a religião. Sabemos que a maioria das religiões consideram a vida sagrada desde a concepção e portanto recriminam ou proíbem o aborto. Só que, numa sociedade laica, as decisões baseadas em critérios religiosos, deveriam ser deixadas para o livre arbítrio de cada indivíduo, não devendo ser matéria de lei.

Outra fonte de argumentação poderia ser a ética deontológica ou o utilitarismo. É bom ou ruim que nasçam crianças de pessoas que não desejam ser pais ou mães, que provavelmente não iriam cuidar bem desses filhos, os quais teriam maiores changes de se tornarem pessoas infelizes, despreparadas pra vida, talvez se tornassem criminosos ou seguissem outros caminhos que as levariam a se tornarem fardos para toda a sociedade? Por outro lado, permitir que embriões e fetos sejam eliminados por conveniência poderia levar uma sociedade a banalizar a vida, levando à normalização de outros comportamentos violentos ou destrutivos?

Outra fonte de sustentação às políticas sobre o tema é a ciência e a tecnologia. Se presumirmos que existe algum caso em que o aborto deva ser permitido, aí, temos de pensar sobre métodos, sobre impactos disso em políticas de saúde pública nos estados que as tem, sobre as responsabilidades dos profissionais de saúde nos procedimentos, e, sobretudo, no limite de tempo até quando o aborto é permitido, o que leva à discussão sobre a partir de que momento o embrião se torna um ser vivo autônomo, desde quando tem consciência ou sentimentos e por aí afora.

Se quisermos olhar pra questão do aborto de forma racional, outro aspecto que precisa ser enfrentado é a manipulação retórica que é amplamente usada tanto por quem milita a favor quanto por quem milita contra. Quem é contra costuma demonstrar indignação dizendo que abortistas estão querendo matar bebês de não sei quantas semanas. Mas, será que essas pessoas realmente pensam em embriões e fetos como bebês? Algum casal comemora o dia da concepção dos filhos? Ou preferem comemorar o aniversário de nascimento? Uma mãe que saia de casa com seu filho após um mês do nascimento, se alguém perguntar qual a idade dele, vai responder que ele tem 10 meses ou que ele tem 1 mês? Sabemos as respostas, então, pra bem da verdade, devemos admitir que toda nossa cultura só conta mesmo o bebê como uma pessoa autônoma depois que ele nasce.

Por outro lado, militantes pró direito de aborto, quando confrontados, as vezes se referem a embriões e fetos como amontoados de células. É fácil dizer isso sobre um feto genérico numa conversa abstrata, mas, quem é que se refere ao próprio feto, a um desejado futuro filho, como amontoado de células? Ninguém, né. Então, vamos combinar que, qualquer que seja nosso lado nesse debate, um embrião ou um feto é mais que células, tem todo um significado e uma simbologia na cultura e nos sentimentos humanos.

A verdade, a meu ver, é que todas as sociedades humanas entendem, mesmo que intuitivamente, que a individualidade não começa num único ponto do tempo, nem na concepção nem no nascimento. É um processo. As vezes começa até antes da concepção, com um casal planejando o futuro filho, construindo histórias que serão depois incorporadas à história do filho. Até o direito reconhece essa certa existência pré concepção ao permitir que se deixe em testamento doações pra futuros filhos. A concepção é, naturalmente, um passo muito importante do processo, mas, ainda assim, um passo. E então começa uma fase de formação, tanto biológica, com o embrião e depois o feto crescendo na barriga da mulher, quanto social e sentimental, com a ideia de um novo indivíduo se formando dentro da família e da comunidade. E esse processo evolui até o nascimento, até a separação dos corpos de mãe e filho e o surgimento de um indivíduo completo e autônomo.

Então, creio que todos os lados desse debate deveriam fazer um esforço para reconhecer que há esse aspecto de processo evolutivo na formação da individualidade e ver as opiniões contrárias a luz desse processo. Quase todo mundo, por exemplo, reconhece a possibilidade de aborto quando a vida da mulher está em risco. Ora, quase ninguém aceitaria que uma criança recém nascida fosse abatida para, de algum modo, salvar a vida da mãe. Então, se a pessoa admite aborto em caso de risco de vida da mulher, já admitiu que de algum modo uma criança é mais viva do que um feto. Por outro lado, até quem defende o direito de aborto em qualquer circunstância, dificilmente vai discordar de que um aborto de um embrião de 4 semanas é menos traumático do que o de um feto de 12 semanas.

Estabelecido esse contexto, me parece o momento de abordar a questão do tempo limite. Aí, me parece que o conhecimento da ciência e tecnologia médica vem a calhar, considerando tanto a formação do feto e de seu sistema nervoso quanto a saúde física e mental da mulher. Mas, também, cabe considerar questões culturais e sentimentais. Não somos máquinas, sentimentos e conceitos relativos à valorização ou banalização da vida também são importantes e tem impactos nos indivíduos e na sociedade. Me parece que é importante estabelecer limites de tempo que permitam à mulher tomar uma decisão bem pensada e ao mesmo tempo respeite a percepção média de valorização da vida.

Outra coisa que quem acompanha minhas ideias bem sabe é que, pra mim, a liberdade é muito importante, porém, anda lado a lado com outro conceito tão importante quanto, que é a responsabilidade. Cada posicionamento tem contrapartidas, que muitas vezes tendemos a esquecer, seja por distração ou por conveniência.

Se reconhecermos o direito da mulher de abortar, ou seja, de desistir de uma gravidez depois da concepção, então, por coerência, não podemos negar esse direito ao homem. Numa sociedade que reconheça o direto da mulher ao aborto, o homem também deveria ser livre para, uma vez informado da futura paternidade, decidir se vai assumi-la. Se a mulher esconder do homem a gravidez ou, sabendo da negativa dele, levar a gravidez adiante, deveria assumir sozinha as responsabilidades pelo filho. Mas, nesse caso, o filho estaria sendo punido pela divergência entre os pais? Creio que não. Ninguém pode escolher as circunstâncias do próprio nascimento. Temos que viver com o que somos.

Por outro lado, uma sociedade que proíba o aborto, que considere que embriões e fetos tenham o direito de se desenvolver e nascer independente da disposição e do desejo da mãe, assume para si a obrigação de cuidar dessa criança. De uma pessoa que se acha no direito de obrigar uma mulher a levar adiante uma gravidez indesejada, eu esperaria que essa pessoa se disponha a criar a criança como se dela fosse. Qualquer coisa menos que isso seria uma contradição.

Concluindo, minha percepção é de que se trata de um assunto bem complexo, com múltiplos aspectos e muitas variáveis sobre as quais as sociedades tem bem pouco controle. E nesses casos, minha convicção é de que o estado deve interferir o mínimo possível. Não há estado que seja muito bom em cuidar de gente, em abarcar suas complexidades biológicas, culturais e emocionais. Então, na dúvida, é melhor deixar que os indivíduos tomem suas próprias decisões e vivam com elas.

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