MULAN

(Leitura: 2 min)

Assisti ao filme Mulan. Em parte, porque gosto de cinema. Em parte, estimulado pelas polêmicas que ele gerou.

É um bom filme. Uma obra de ação típica. Uma pessoa simples, anônima, passa por um processo de aventura, aprendizado e superação para, finalmente, salvar o mundo. Fórmula clássica que qualquer pessoa que curte cinema já viu Hollywood repetir quase ao infinito e que nunca se exaure.

Mas, tem uma diferença essencial em relação aos outros trocentos filmes de ação que Hollywood já fez. Enquanto os outros louvavam o ideal de estilo de vida americano (american way of life), este exalta o ideal de estilo de vida chinês (não sei como dizer em mandarim, ainda).

Todos os elementos estão lá. O grande líder que vive para cuidar de seu povo, enfrentando perigos em pessoa se necessário; o governo central que deve ser honrado e servido por todos; os inimigos externos que querem destruir o modo de vida chinês; o dever de todos de se submeter ao governo, à família e à tradição, e se sentir honrado por isso.

Que os estúdios Disney faça um filme assim, é o esperado. A apologia aos Estados Unidos ser trocada pela apologia à China é o que impressiona. Se uma das mais poderosas máquinas de propaganda político ideológica americana já se coloca abertamente à serviço do governo chinês, talvez a China já tenha ganho a terceira guerra mundial e a gente nem percebeu.

VIGIAR E PUNIR (Resenha)

(Tempo de leitura: 5 min)

Nesta obra, Foucault é o historiador em essência. Ele analisa o desenvolvimento do trinômio poder, pena e disciplina desde a Idade Média até o Século XX. Destaca como a punição ao crime evolui do castigo físico, aplicado em público em nome do Rei, passando pela propostas de reforma que buscavam variar a pena conforme o bem ofendido pelo crime até chegar ao uso quase universal da prisão como pena no Estado Moderno. Mostra também como a arte da disciplina evoluiu neste período, passando a abarcar diversos processos de controle coletivo, não só nas prisões, mas também nos hospitais, nas escolas, nas fábricas e outras instituições que nasceram da revolução industrial. Por fim, demostra como a pena e a disciplina estão relacionadas aos mecanismos de poder, como se encaixam num arranjo social mais geral que passa a predominar nas sociedades modernas. Em sua performance descritiva e analítica, o autor é brilhante.

No entanto, ao exercer brilhantemente seu papel de historiador, ele não escapa de um problema comum nas análises históricas. Ele conta a história do trinômio poder, pena, e disciplina através de uma narrativa que busca transformar uma coletânea de acontecimentos que vão se sucedendo e se cruzando em uma cadeia de eventos planejados, coordenados e dirigidos a uma finalidade. Ele transforma um “processo evolutivo” em um “design inteligente”. Esse é um desafio que o pessoal da história terá que encarar algum dia. Achar um jeito de ser empolgante sem ser romântico. Encontrar um equilíbrio entre encanto e objetividade.

Um ponto marcante do livro é a apresentação do conceito de panóptico, um prédio construído para ser o paraíso da disciplina, um conjunto de torres e células onde indivíduos são levados viver e produzir sob constante vigilância, enquanto os vigias também são vigiados numa espiral de disciplina, onde o vigiar e ser vigiado se torna o próprio motor que movimenta a existência. Avançando um pouco no tempo, vemos que o panóptico, como construção material, se torna obsoleto com o desenvolvimento da tecnologia. As mesmas funções podem ser obtidas com mais acuidade e maior escala através de câmeras e telas, e levadas a um nível ainda mais automático e sutil através da inteligência artificial e da ciência de dados.

Por fim, fica da obra a impressão que o autor não economiza na crítica ao mundo em que vive e aos processos que lhe deram origem, porém, não consegue esboçar qualquer proposta, qualquer caminho alternativo para longe das tensões ou angústias que o incomodam. Parece se ressentir com a evolução que permitiu a Europa multiplicar sua população, sua expectativa de vida e os confortos materiais de seus habitantes, mas, ao mesmo tempo falha em propor transformações positivas. Demonstra uma visão amarga do presente e uma perspectiva sombria do futuro. A gente quase concluí que ele prefere os suplícios da era feudal às disciplinas do mundo moderno, que deseja trocar a abundância industrial pela escassez do estado de natureza. A leitura é saborosa, mas, deixa um retrogosto de apologia ao passado.