PRECISAMOS FALAR SOBRE PREVIDÊNCIA

(Leitura: 15 min)

PREÂMBULO

Escrevi esse artigo durante a última reforma da previdência. Infelizmente, as reformas de previdências estaduais ora em debate me lembram que ele continua atual e necessário. Ainda mais nesses tempos de pandemia.

As diversas reformas da previdência que foram feitas ao longo dos anos têm pontos positivos. Tem pontos problemáticos também. Mas, o mais importante é o que elas não têm. Elas nunca passaram nem perto de abordar os principais absurdos e as principais injustiças de nosso sistema previdenciário. E são esses problemas que tornam nosso sistema previdenciário injusto e ilegítimo, uma verdadeira máquina de transferir dinheiro de trabalhadores sofridos para pessoas privilegiadas. Ademais, o que essas reformas fazem mesmo é jogar para mais adiante as urgências e fazer com que os trabalhadores atuais tenham que trabalhar por ainda mais tempo, se aposentando mais tarde e recebendo menos, para continuarem pagando mais e por mais tempo os privilégios de pessoas que já estão, hoje, recebendo benefícios injustos e imorais.

Sem encarar tais flagrantes absurdos e injustiças, qualquer reforma, mesmo com pontos positivos, acaba sendo ilegítima. E o que seria uma reforma justa e legítima, na minha opinião? Vamos ao esboço dela sem mais delongas.

PROPOSTA

  1. Toda pessoa maior de 21 anos que ainda recebe pensão pela morte de pai ou mãe, terá sua pensão cancelada imediatamente.
  2. O valor máximo de aposentadoria paga pelo INSS passará a ser o teto do Regime Geral de Previdência Social (valor atual 6.101,06). Toda aposentadoria que ultrapassá-lo será reduzida para este valor na data em que a reforma entrar em vigor.
  3. Toda pessoa que tiver se aposentado com idade menor do que a mínima (65 anos seria um bom número, mas, pode ser outro) terá sua aposentadoria revista. Se ainda tiver menos que a idade mínima na data que a reforma entrar em vigor, a aposentadoria será cancelada e a pessoa terá que se aposentar novamente quando completar a idade mínima. Se já tiver mais do que a idade mínima, a aposentadoria será mantida mas o valor será recalculado com base no tempo efetivo de contribuição e nos valores contribuídos.
  4. A partir de agora, todo mundo terá que esperar até atingir a idade mínima para se aposentar. No entanto, uma vez que atinja um tempo mínimo de contribuição (35 anos seria um bom número mas pode ser outro), não precisará mais contribuir.
  5. O valor das aposentadoria passará a ser indexado à arrecadação do INSS. Será criado o índice IN$$. No momento que a reforma entrar em vigor todas as aposentadorias, depois de ajustadas com base nos quatro itens anteriores, serão convertidas em IN$$, com valor inicial igual à menor aposentadoria em vigor no pais. Ou seja, a menor aposentaria será de IN$$ 1,00 e a maior de IN$$ 5,84. Todo mês, o valor do IN$$ será recalculado com base na arrecadação do INSS no mês anterior, subtraindo-se as despesas de custeio do sistema e dividindo-se o total restante em R$ pelo total a ser pago em IN$$ e então se terá o valor do IN$$ para o mês.
  6. Essa reforma valerá para todos os brasileiros, sem exceções.

JUSTIFICATIVA

As vantagens de um sistema assim, considerando o todo da população brasileira, são muitas. Porém, algumas saltam aos olhos:

  • É justo. Todo mundo paga pelas mesmas regras. Todo mundo recebe pelas mesmas regras. Não tem mais essa coisa de um trabalhador passar uma vida inteira ralando para ajudar a pagar a aposentadoria milionária de um político ou burocrata privilegiado que se aposentou cedo e, quando finalmente se aposentar na velhice, receber muitas vezes menos do que os super-aposentados que carregou nas costas por décadas.
  • Não tem déficit. O sistema paga com base no que foi arrecadado. Desequilíbrio atuarial zero.
  • É simples, objetivo e transparente. Qualquer um entende o que tá pagando e de que forma vai receber. Pode ser facilmente monitorado por toda a população brasileira. Não será mais preciso especialistas (que nunca concordam entre si) para nos dizer se há ou não déficit.

Acho importante ainda salientar que esse texto se trata de um esboço do que deveria ser os pontos centrais de uma verdadeira reforma da previdência. Não há a pretensão de ser preciso em termos técnicos ou jurídicos. O foco é na essência do que deve ser reformado na busca de justiça, equilíbrio e eficácia.

PERGUNTAS E RESPOSTAS

Imagino que quem leu até aqui esteja pensando em uma série de questões e considerações sobre a proposta. Vou já antecipar algumas que me ocorrem e buscar comentá-las.

Mas as mudanças que você propõe não são inconstitucionais? E o direito adquirido, como fica?

Muito pelo contrário. A reforma que proponho visa exatamente implementar os princípios definidos na nossa constituição. Vejamos o que diz a CF/88:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:

III – a dignidade da pessoa humana;

Agora, me digam, uma pessoa que trabalha desde a adolescência até os 65 anos de idade (talvez mais, já que cada arremeto de reforma que aprovam aumenta mais esse limite) para poder se aposentar com um salário mínimo e, durante todo esse tempo, contribui para bancar a aposentadoria de gente que recebe 20 mil reais, 30 mil, as vezes mais de 50 mil reais por mês tendo se aposentado muito mais cedo, as vezes com apenas 8 anos de mandato em cargo eletivo, as vezes sem nunca ter trabalhado na vida, alguém realmente acha que essa pessoa está tendo sua dignidade humana respeitada? Eu acho que não. Precisamos reformar, de verdade, esse sistema exatamente para promover a dignidade dos trabalhadores brasileiros que a CF/88 consagrou como princípio já em seu primeiro artigo.

Mas, não para por aí, outros princípios básicos da constituição andam sendo flagrantemente violados e necessitam serem implementados. Vejamos o título dos direitos e garantias fundamentais:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”

Ora, todos são iguais perante a lei. Então, por quê alguns brasileiros deveriam ter o direito a um sistema de previdência próprio, bancado pelo trabalho dos demais brasileiros? Será que o fato de a pessoa passar em um concurso ou vencer uma eleição dá a ela o direito de ser tratada por um conjunto distinto de leis? Dá a ela o direito de ser uma exceção ao Art. 5o da constituição? Pior, será que ser filho ou filha de alguém que um dia passou num determinado concurso dá à pessoa esse direito? Acho que não. O fato de algumas pessoas estarem recebendo poupudas rendas mensais as custas dos demais trabalhadores brasileiros é uma violação direta e imediata à CF/88 que precisa ser imediatamente corrigida se quisermos de fato ser um verdadeiro estado de direito.

Mas, alguém sempre pode lembrar que o Art. 5o que acabei de citar também tem esse inciso:

“XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;”

Será que este inciso pode contrariar o caput do artigo e permitir que a lei dê privilégios especiais para algumas pessoas? Ou, ainda, pode esse inciso contrariar o Art. 1o e permitir que a lei viole a dignidade dos trabalhadores brasileiros em nome de um suposto direito adquirido, em nome de uma injustiça que foi colocada na lei em algum momento do passado e que condena todo brasileiro que nasce hoje numa família de classe baixa a passar a vida toda pagando uma pensão nababesca para alguém que está vivendo a bem mais tempo que ele, pouco ou nada trabalhou e, por força de alguma injustiça, mesmo que escrita na lei, ganhou uma pensão mensal absurda sem ninguém dizer de onde sairia o dinheiro, apenas assumindo que os trabalhadores do futuro seriam obrigados a pagar essa conta? Eu acho que não. Isso não é direito adquirido, é escravidão. Ninguém pode ser condenado a passar a vida pagando os privilégios de outros, a passar a vida bancando a outros privilégios que a própria pessoa nunca terá. A escravidão foi abolida 1888, será que esquecemos isso? Aliás, já que estamos falando de impor esse absurdo a pessoas que nem sequer nasceram, devemos lembrar que pra esses a escravidão foi abolida ainda antes, 1871, pela Lei do Ventre Livre.

Você não vai propor nenhuma mudança nas idades mínimas ou nos tempos mínimos de contribuição?

Essas questões são importantes, mas, ficam em segundo plano. Uma vez que estejam implementados os items acima e eliminado tanto o déficit quanto as injustiças, as questões de idade mínima e tempo mínimo de contribuição, bem como outros pontos relevantes, tais como aposentadoria rural e benefício de prestação continuada, poderão ser rediscutidos não em função de caber ou não no orçamento, mas, em função de serem ou não justos e em função de seus impactos no equilíbrio entre os diversos membros do sistema.

E as alíquotas para contribuição para a previdência, como que fica?

Assim como as idades mínimas e tempos mínimos de contribuição, podem ser ajustadas posteriormente, com calma. Só não podem subir, pra ninguém, em hipótese alguma. O estado já nos toma dinheiro demais.

E a capitalização? Sua proposta não inclui a capitalização?

Capitalização é ótimo. A todo mundo que quiser complementar sua aposentadoria eu sugiro procurar uma instituição de previdência privada e começar um plano de investimento. Porém, o mercado privado pode perfeitamente dar conta disso. Ao Estado, cabe apenas zelar pelo cumprimento dos contratos, disponibilizando um sistema de justiça eficiente e acessível. Gerir planos de aposentadoria por capitalização não é tarefa para o Estado. Nossa história nos ensina muito bem no que dá colocar uma montanha de dinheiro na mão do Estado e esperar que os agendes dele façam bons investimentos de longo prazo com a grana.

Você mesmo poderá se aposentar antes dos 65 anos de acordo com as regras atuais. Vai abrir mão disso?

Se uma reforma semelhante à que proponho para o bem da sociedade brasileira for aprovada eu espero minha vez até os 65 de bom grado. Porém, se as regras atuais ou semelhantes forem mantidas, eu quero o meu benefício o mais rápido possível. Me considero uma pessoa justa, porém, não me considero um trouxa.

Os deputados e senadores que devem aprovar tal proposta são eles próprios membros proeminentes do grupo que tem super aposentarias ou estão prestes a obtê-las. Faz sentido imaginar que eles votem uma mudança que irá tirar-lhes esse direito?

Ora, se eles desejam impor regras novas aos trabalhadores que pagam a conta, eles devem ser os primeiros a aceitar essas regras. É uma questão de exemplo, de justiça, de coerência, e sobretudo, de legitimidade. Claro que é difícil promover mudanças que contrariem interesses exatamente de quem é autoridade em um ambiente democrático. Não sou ingênuo a ponto de achar que é fácil. Mas, não devemos aceitar menos. E é importante lembrar que somos nós trabalhadores que pagamos essa conta. Fingir que o problema não existe não vai resolvê-lo. Conformar-se também não. Expor a verdade é um primeiro passo.

Mas, pensa numa pessoa velhinha que já está acostumada a viver com uma renda mensal de, digamos, 12 mil reais por pês. Você quer agora chegar e obrigá-la a viver com pouco mais de 6 mil reais por mês?

Se essa pessoa passou a vida toda ganhando um alto salário, seja como funcionário público ou aposentado, ela poderia perfeitamente ter formado um patrimônio que lhe permita tranquilidade na velhice. Se não o fez, merece ter uma velhice mais frugal. De todo modo, ninguém tá falando em deixar essa pessoa na miséria, ela continuará aposentada, só que recebendo um valor semelhante aos demais brasileiros.

Mas, o funcionário público que recebe uma super-aposentadoria é porque contribuiu para o seu regime próprio de previdência com valores acima das contribuições que os trabalhadores do regime geral contribuem.

Não, não contribuiu. É importante lembrar que não estamos falando de técnicos municipais que ganhem dois ou três salários mínimos. Essas pessoas não serão afetadas a não ser, talvez, pela idade mínima. Estamos falando de políticos e funcionários públicos do judiciário, do legislativo e de cargos específicos do executivo que ganham dezenas de milhares de reais por mês, valores muito acima de cargos semelhantes na iniciativa privada. Essas pessoas contribuem para seus regimes próprios de previdência formalmente falando, mas, na prática, isso é apenas um malabarismo contábil. O dinheiro que elas recebem todos os meses saiu do cofre do estado, então, o que apareceu no contracheque delas como contribuição previdenciária foram apenas valores que deixaram de sair dos cofres públicos, ou seja, apenas se diminuiu um pouco a transferência de dinheiro dos pagadores de impostos para esses privilegiados.

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