MAIORIAS, MINORIAS E DEMOCRACIA LÍQUIDA

(Leitura: 25 min)

1. UM POUCO DE HISTÓRIA

Recentemente escrevi sobre maiorias silenciosas e minorias barulhentas. Um colega comentou que a ordem institucional no Brasil e no mundo muitas vezes representa mais as minorias do que a maioria. Aproveitando a proximidade de mais uma eleição, proponho refletirmos sobre como a democracia representativa tende a superestimar os interesses das minorias mais organizadas e barulhentas e menosprezar a vontade da maioria silenciosa, e sobre como seria possível mitigar essa tendência.

Primeiro, vamos considerar o plano internacional. Aí, não parece haver muito que se possa fazer, já que as relações entre países, por mais que formas de governança planetária tenham sido ensaiadas nas últimas décadas, ainda são mais anárquicas do que democráticas. No entanto, os líderes e representantes que atuam em nome de seus países são eleitos democraticamente por seus respectivos povos, pelo menos nos países democráticos. Então, mesmo que as relações internacionais não sejam formalmente democráticas, serão tão mais democráticas quanto mais democráticas forem as escolhas dos representantes de cada país. É aí, no plano interno de cada país, que há muito espaço para melhoria da representatividade. E é sobre isso que quero refletir, considerando principalmente o cenário brasileiro, afinal, eu sou brasileiro, pretendo continuar vivendo aqui e acredito que, por mais que as experiências de outros países sirvam de exemplos e de aprendizado, precisamos encontrar soluções nossas para nossos próprios problemas.

A democracia representativa começou a tomar forma no século XVII e se consolidou no século XVIII, notadamente a partir da formação dos Estados Unidos da América. Houveram sociedades democráticas anteriores, como a Grécia antiga entre outros exemplos, mas, foram experiências muito diferentes e em escala muito menor. O formato de democracia que conhecemos e usamos hoje nasceu no século XVIII. É preciso reconhecer que para aquela época foi um avanço civilizatório magnífico. Desde então, mais de dois séculos já se passaram. A existência humana passou por consideráveis transformações materiais, sociais e culturais. As tecnologias que usamos hoje pareceriam mágica para muita gente daquela época; Discriminações entre as pessoas se tornaram intoleráveis. A velocidade das comunicações transformou o planeta numa aldeia global. Queiramos ou não, vivemos rodeados pelos barulhos dos vizinhos. No entanto, a democracia inventada naquela época não mudou quase nada. Continuamos votando apenas de quatro em quatro anos para escolher representantes que irão exercer poder pelos anos seguintes, teoricamente, em nome dos eleitores. Porém, enquanto os eleitores voltam para casa e só irão se manifestar novamente quatro anos depois, os eleitos agem como donos do país, do estado ou da cidade, respondendo apenas a grupos que consigam se organizar e incomodá-los continuadamente.

No século XVIII esse modelo fazia todo sentido. A população de Massachussets, por exemplo, levava dias para seu reunir e eleger alguns representantes que, por sua vez, iriam levar dias até chegar a Washington e se reunir a outros representantes do resto do país e tomar decisões. Qualquer decisão tomada pelo governo na capital irar levar dias, talvez semanas, para ser conhecida no território todo. Qualquer projeto aprovado iria levar meses, talvez anos, para ser implementado e afetar a vida de todos os cidadãos do país. Não dava pra imaginar coisa mais viável e democrática do que a eleição de representantes. Hoje, quando uma decisão tomada na Casa Branca se torna imediatamente conhecida não só em todo território americano, mas, em todo canto do planeta em segundos, afetando a vida de gente no nundo todo instantaneamente, será que ainda faz sentido continuarmos usando o mesmo modelo de representação?

2. LIMITES DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

E há outros problemas. No Brasil, por exemplo, sempre que um governante federal se vê diante de resistências aos seus projetos ou ameaçado por impeachment, costuma esbravejar: Eu foi eleito por tantos milhões de eleitores, a vontade desses eleitores tem de ser respeitada! Ora, foi eleito por tantos milhões de eleitores há um, dois ou três anos atrás. Será que se os eleitores fossem consultados agora votariam do mesmo jeito? Não sabemos e não é viável organizar uma eleição nacional a cada mês para perguntar-lhes. Da mesma maneira, sempre que um grupo de interesse consegue botar algumas centenas de milhares de pessoas nas ruas das capitais do país defendendo alguma causa, já vêm logo com aquela prosa tipo: A opinião pública está a nosso favor! Será? O que significa algumas centenas de milhares de militantes barulhentos diante de dezenas de milhões de eleitores? Será que a maioria dos eleitores se sentem representados? Hoje, não há como saber. Pode se fazer pesquisas usando tecnologias estatísticas que permitem captar de forma aproximada a opinião média, mas, sempre haverá margem de erro e nem todos vão confiar nas instituições que realizam as pesquisas. Não é, portanto, um meio oficialmente válido de aferir a vontade dos eleitores.

Há ainda as recorrentes suspeitas de fraudes em eleições e a impossibilidade de se auditar uma eleição de ponta a ponta na democracia representativa, devido ao fato de o voto ser secreto. Pode-se partir do total de votos e rastrear cada voto até a urna da qual ele saiu, mas, nunca se poderá chegar até o eleitor para perguntar se ele realmente votou naquele candidato. Mesmo que se implemente impressão dos votos, o rastreamento até o eleitor continuará impossível e, portanto, não se pode falar em um sistema totalmente auditável.

O que pode ser feito, então? Na minha opinião, a democracia representativa já cumpriu o seu papel. Seu tempo histórico já se foi. Nosso tempo, nosso modelo de sociedade, nosso modo de vida tecnológico demanda um novo modelo de democracia. Que seja confiável e auditável; que garanta um vínculo permanente entre eleitor e eleito, de modo que o eleitor seja efetivamente representado no poder; e que seja dinâmico o suficiente para responder às mudanças nas circunstâncias, no comportamento do eleito e na vontade do eleitor.

Se alguém leu até aqui talvez esteja pensando em democracia direta ou semi-direta. Não tô falando de democracia direta. Seria impossível colocar toda a população brasileira na praça dos três poderes para deliberar sobre alguma coisa como se estivesse numa ágora grega. Poderia se implementar voto online, mas, não seria suficiente. A quantidade de decisões que são tomadas todos os dias em qualquer parlamento e em qualquer governo demanda gente especializada e com muito tempo dedicado. Além disso, qualquer pessoa que já tentou administrar uma um boteco ou uma república de estudantes sabe que não se resolve nada com um bando de gente falando ao mesmo tempo. É preciso estrutura, delegação de tarefas, divisão do trabalho, enfim, decisões coletivas e administração de interesses comuns é complexo e demanda organização e pessoas capacitadas. Democracia direta não é viável nem em escala municipal, muito menos estadual ou nacional. Já a democracia semi-direta (plebiscitos, referendos, iniciativa popular e recall) é interessante e tem suas aplicações, mas, nem passa perto de resolver os problemas essenciais da democracia representativa.

3. APRESENTAÇÃO DE UM NOVO MODELO

O que eu proponho então? Creio que está na hora de começarmos a pensar seriamente na democracia líquida. O que é isso? É um conceito relativamente novo, que vem sendo desenvolvido por grupos diversos ao redor do mundo. Não é uma fórmula pronta e acabada, mas, um conjunto de idéias e propostas que podem levar à construção de um modelo democrático muito mais adaptado ao nosso tempo. Não vou esgotar o tema. Isso estaria muito além da minha capacidade e do escopo desse post. Quem tiver interesse dá um google em “democracia líquida” e vai achar muita informação. Eu vou apenas propor algumas idéias relacionadas ao tema que me parecem pertinentes e sobre as quais convido as pessoas a pensar a respeito.

O ponto que eu acho essencial é mudar a relação entre o eleitor e o eleito. Chega de dar poder a alguém e vê-lo dono de nosso destino por quatro longos anos. O eleito não deve ser dono do voto do eleitor, deve ser um procurador. Quando estabelecemos um procurador para nos representar (um advogado, por exemplo) ele só nos representa enquanto estivermos satisfeitos com o trabalho que ele está fazendo. Se perdemos a confiança no trabalho dele, seja por duvidar de sua competência ou de sua honestidade, demitimos ele e contratamos outro. Nossa relação com um político tem de ser a mesma. Temos de ter meios de dar o voto e retirar o voto a qualquer momento. Dá pra implementar isso? Com a tecnologia que já temos disponível hoje, dá. O TSE (ou outro órgão mais adequado, mas, isso já é outro assunto) constrói um sistema no qual todo eleitor pode, a qualquer momento, se conectar usando um computador ou um celular e escolher seu representante em qualquer instância política, seja a câmara municipal, a prefeitura, a assembléia estadual, o governo do estado, a câmara federal, o senado ou a presidência da república. Mas, isso é seguro? Ora, a maioria de nós faz algo semelhante pra acessar nosso banco e fazer transações com nosso dinheiro, por que não fazer com o voto? E as pessoas que não tem acesso ou não sabem lidar com tecnologia? A justiça eleitoral pode manter quiosques disponíveis para elas em locais acessíveis, com telas bem simples, de tal modo que qualquer pessoa que use uma urna eletrônica hoje consiga usar o novo sistema. A demanda por estes quiosques seria pequena e decrescente.

E como funcionaria isso? Os partidos escolheriam seus candidatos, que se registrariam no sistema e se tornariam votáveis. Candidatos avulsos também seriam bem vindos. As candidaturas poderiam ser registradas a qualquer tempo. A votação seria contínua. O eleitor tanto poderia escolher um representante para um cargo para o qual ele ainda não escolheu nenhum quanto trocar uma escolha anterior por um novo nome.

E como vamos saber quem ganhou, quem efetivamente assume os cargos? Imagino modelos ligeiramente diferentes para eleições legislativas e executivas. No legislativo, toma-se o número total de eleitores que votaram e divide-se pelo número de integrantes que queremos na casa legislativa. Quem representar pelo nenos o número mínimo de votos, assume uma cadeira. Vejamos um exemplo com base nos números aproximados da eleição pra Assembléia Estadual de Minas em 2018. Tivemos 10 milhões de votos e 77 vagas de deputado pra preencher. Desse modo, teríamos 10 milhões divididos por 77 igual a, arredondando, 130 mil. Ou seja, quem representasse 130 mil eleitores teria uma cadeira na assembléia. Alguns talvez tivessem mais votos do que isso. Por isso, creio que seria importante que o voto de cada parlamentar tivesse peso proporcional à quantidade de eleitores que ele representa. E os votos que foram para candidatos que não obtiveram os 130 mil votos? Aí, haveriam duas opções. Uma opção que o eleitor teria é mudar seu voto para outro candidato que parecesse lhe representar quase tão bem quanto e, assim, mais candidatos iriam chegando ao mínimo de 130 mil votos. A segunda opção, e aí entramos em outra característica interessante da democracia líquida, seria a delegação de votos. Da mesma forma que um eleitor delega seu voto a um representante, um representante pode também delegar seus votos pra outro. Se o José obteve 50 mil votos, ele não conseguirá uma cadeira, mas, ele pode chegar a um acordo com a Maria, colega que defende ideias e propostas semelhantes às dele, que obteve 90 mil votos e também não conseguiu sua cadeira, e delegar seus votos para ela, de modo que agora Maria terá 140 mil votos e conseguirá sua cadeira, ficando os eleitores de Maria e de José agora representados na câmara. Ora, mas, aí, não iria descambar pra compra e venda de votos, pra acordos entre candidatos que não tem qualquer semelhança a não ser o desejo de obter algum poder? Não creio. Lembrem-se que o voto é dinâmico, a votação é contínua, o eleitor pode mudar o voto a qualquer momento. Se o eleitor de José não se sentir representando por Maria, o acordo entre os dois não vai durar nada. No dia seguinte os eleitores de José mudam seus votos para outro candidato ou pra nenhum, a representatividade de José cai de 50 mil pra meia duzia de votos e Maria perde novamente sua cadeira na câmara. A delegação de votos só é efetiva se os eleitores se sentirem representados por ela.

No executivo suponho que teria de ser um pouco diferente. Como há só uma vaga e é necessário uniformidade de atuação do governo, nem todos os eleitores poderão ser representados, terá de haver governo e oposição. Porém, é desejável que o governo represente o máximo possível de eleitores. Imagino um modelo em que, para assumir o governo, um candidato ao executivo precisa representar dois terços do eleitorado. Pra isso, além de seus próprios votos, ele pode fazer coalização com outros candidatos e obter delegação de votos (conceito explicado acima quando falamos da eleição parlamentar). E se ninguém conseguir os dois terços? Continua-se as negociações entre os candidatos detentores de soma significativa de votos, ao mesmo tempo em que os eleitores podem se manifestar mudando sues votos, até que se chegue a uma coalizão viável. Enquanto isso o governo é exercido pelo executivo anterior ou, na falta dele, pelo chefe do legislativo com poderes limitados. Só que, no caso do executivo, diferentemente do legislativo, é preciso haver critérios distintos para ganhar a cadeira e para perder a cadeira. Imagine o seguinte cenário: Dia 1: um candidato João consegue os dois terços do votos e assume; Dia 2: 1% dos eleitores mudam de ideia, o João perde o cargo; Dia 3: um candidato obscuro que tem 1% dos votos adere ao João, o João assume de novo; e assim por diante. Não dá. Nenhum governo funcionaria com essa instabilidade. Imagino que, uma vez que alguém assume o cargo, teria que ter algum tempo e tranquilidade para montar um governo e implementar seus planos. Penso que um bom critério para um chefe do executivo perder o cargo seria sua base eleitoral baixar de dois terços para menos de um terço. Então, se o governo começasse a ir mal, veríamos eleitores retirando seu voto ou mudando seu voto pra candidatos de oposição. A princípio isso seria um movimento esperado pelo governo. Ninguém consegue agradar a todos. Porém, se a insatisfação fosse grande, a ponto de menos de um terço dos eleitores continuar apoiando o governo, ele perderia automaticamente o cargo e o processo de formação de um novo governo começaria. Além disso, saberíamos, o tempo todo, a qualquer momento, qual a real representatividade de um governante.

4. DESAFIOS E POSSIBILIDADES

A essa altura, talvez vocês estejam pensando que esse sistema seria muito instável, com políticos assumindo e caindo o tempo todo. Eu acredito que no início seria meio instável mesmo. Mas, com o passar do tempo, as pessoas se acostumariam com o modelo. Os políticos se veriam obrigados a cassar votos fazendo propostas factíveis, afinal, não durariam muito se traíssem seus compromissos e também aprenderiam a representar melhor os eleitores, que estariam de olho e teriam poder para avaliá-los de fato o tempo todo. Os eleitores se veriam obrigados a votar com mais responsabilidade e acompanhar a atuação de seus representantes. O sistema acharia um equilíbrio.

Agora, precisamos tratar do que, a meu ver, é o principal prolema desse modelo. O voto teria que ser aberto. Seria muito difícil de manter a segurança e integridade de um sistema desses se os votos fossem secretos. Existem soluções tecnológicas para votações online e secretas, mas, não creio que seriam suficientes. Um sistema de votação continuada, com mudança de votos a qualquer tempo, com delegação de votos, seria impossível de ser mantido íntegro e seguro sem auditoria de uma ponta a outra. Seriam inevitáveis votos sumirem aqui e aparecerem acolá. Só voto aberto daria conta.

Mas, acabar com o voto secreto seria mesmo um problema? Vejamos. A ideia de votação secreta fazia todo sentido numa época de famílias patriarcais, coronelismo, currais eleitorais e outras relações sociais de subordinação violenta ou opressiva. Mas, atualmente, com o grau de liberdade individual e garantias fundamentais que experimentamos, me parece razoável que cada um faça suas escolhas políticas livremente e assuma responsabilidade por elas. Talvez o voto aberto ainda possa ser problemático em favelas controlados por traficantes ou milícias, mas, vamos pensar francamente: com toda a ausência de direitos básicos e proteção do estado que tais comunidades enfrentam, a dificuldade de exercer os direitos políticos está longe de ser o maior dos problemas.

Alguém deve estar se lembrando que a Constituição de 88 define como cláusula pétrea o “o voto direto, secreto, universal e periódico”. É verdade. Mas, também é verdade que a constituição possui normas principiológicas, que devem ser interpretadas à luz do desenvolvimento presente da sociedade brasileira, como é fartamento exemplificado pelos acórdãos e súmulas do STF em diversos temas, e também é verdade que muita coisa mudou na nossa sociedade entre 1988 e o momento atual. Pretendo demonstrar que o que proponho não ofende de modo algum a essência do artigo 60 acima citado. Primeiro, o voto deve ser direto, o que significa que cada voto deve ter o mesmo peso. O sistema que proponho torna o voto ainda mais direto, então, não vejo problema aqui. Segundo, o voto deve ser universal, isto é, todos devem ter direito a votar sem discriminações. Não se mexe nisso. Terceiro, o voto deve ser periódico. Aqui, pode haver algum problema de interpretação. Alguém pode argumentar que a possibilidade de voto contínuo que proponho não é voto periódico. Acredito que no voto contínuo apenas se reduz o período a um tempo bem pequeno, não mudando a essência da ideia, que é a possibilidade de o eleitor reavaliar seus representantes com alguma frequência. Pelo contrário, a democracia líquida aumenta muito essa possibilidade. Por fim, vamos examinar a questão do voto secreto. Acredito que a essência dessa norma, quando colocada pelo legislador em 1988, era a necessidade de garantir que o eleitor não será perturbado ao exercer seus direitos políticos, que será livre para escolher quem lhe representa, que não será compelido por qualquer força exterior à sua autonomia individual a votar contra sua própria vontade. E acredito também que o sistema que proponho cumpre essa necessidade essencial melhor que o voto secreto. O eleitor terá a garantia de poder exercer seu voto. Nenhum contratempo poderá impedir que o eleitor vote, afinal, se ele não conseguir fazê-lo hoje, poderá fazê-lo amanhã com a mesma eficácia. Se for compelido de algum modo a votar diferente de sua vontade, poderá corrigir seu voto a qualquer momento futuro, além de poder procurar a polícia e/ou a justiça para punir o constrangimento ilegal de que foi vítima. Além disso, terá a garantia de que não foi vítima de qualquer tipo de fraude, posto que poderá, a qualquer tempo, conferir se seu voto está corretamente registrado no sistema e alterá-lo se desejar. Assim, sendo, acredito que em um sistema de democracia líquida, a liberdade de exercer os direitos políticos que a Constituição de 88 quis resguardar não só estará garantida, como estará sendo levada a um patamar mais avançado, não podendo, portanto, se falar em inconstitucionalidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Então tá tudo resolvido, bora por pra funcionar? Acho que não. Acredito que mudanças impactantes devem ser feitas com cautela, tão gradualmente quanto possível. Também é importante testá-las em pequena escala, avaliar os resultados, ajustar o que for necessário e ir aumentando a escala na medida que os diversos envolvidos forem ganhando confiança na novidade. Creio que o ideal seria fazer projetos pilotos em algumas cidades em regiões variadas do país, onde a população aprovasse previamente a experiência através de plebiscito. Poderia se testar modelos distintos em cada cidade para se verificar quais características do modelo funcionam melhor na prática. Quado tivermos um modelo estável no nível municipal, vamos pro nível estadual e assim por diante.

Finalmente, acho importante salientar que este post não pretende ter rigor acadêmico ou jurídico. Pretende apenas lançar uma ideia, fomentar o debate sobre um tema que acredito ser relevante para nosso país, para quaisquer sociedade livre e para a própria ideia de democracia.

MULAN

(Leitura: 2 min)

Assisti ao filme Mulan. Em parte, porque gosto de cinema. Em parte, estimulado pelas polêmicas que ele gerou.

É um bom filme. Uma obra de ação típica. Uma pessoa simples, anônima, passa por um processo de aventura, aprendizado e superação para, finalmente, salvar o mundo. Fórmula clássica que qualquer pessoa que curte cinema já viu Hollywood repetir quase ao infinito e que nunca se exaure.

Mas, tem uma diferença essencial em relação aos outros trocentos filmes de ação que Hollywood já fez. Enquanto os outros louvavam o ideal de estilo de vida americano (american way of life), este exalta o ideal de estilo de vida chinês (não sei como dizer em mandarim, ainda).

Todos os elementos estão lá. O grande líder que vive para cuidar de seu povo, enfrentando perigos em pessoa se necessário; o governo central que deve ser honrado e servido por todos; os inimigos externos que querem destruir o modo de vida chinês; o dever de todos de se submeter ao governo, à família e à tradição, e se sentir honrado por isso.

Que os estúdios Disney faça um filme assim, é o esperado. A apologia aos Estados Unidos ser trocada pela apologia à China é o que impressiona. Se uma das mais poderosas máquinas de propaganda político ideológica americana já se coloca abertamente à serviço do governo chinês, talvez a China já tenha ganho a terceira guerra mundial e a gente nem percebeu.

LINGUAGEM NEUTRA

Pra mudar o português brasileiro não precisa reforma ortográfica, nem lei, nem pedir autorização pra ninguém. Se o pessoal lgbd+/- quer criar uma classe de pronomes neutros ou mesmo criar variações de substantivos e adjetivos eu não tenho nada contra. Posso participar da mudança se gostar das palavras novas. Só não podem querer obrigar ninguém a usar suas novidades. Promovê-las, sim. Se colar, blz. Senão, usem-nas em seus nichos e não encham o saco.

IMPOSTOS – PAGADORES E CONSUMIDORES

(Leitura: 4 min)

Direita e esquerda, socialista e liberal, conservadores e progressistas. Há muitas maneiras de classificar as pessoas em grupos distintos. Nenhuma é perfeita. Nenhuma é definitiva. Todas elas têm seus usos. Ajudam a compreender cenários e facilitam a comunicação. E todas tem também suas limitações e trazem consigo o risco de acirrar preconceitos. Mas, talvez, nenhuma classificação social seja tão útil para compreender o atual momento político e ideológico no ocidente do que a divisão das pessoas em pagadores e consumidores de impostos.

Quase todo mundo paga algum imposto e também consome algum serviço público. Mas, para efeito dessa classificação, vale o que for preponderante. É pagador de impostos quem coloca dinheiro no cofre do governo mais do que recebe dele. E é consumidor de impostos quem recebe do governo mais do que paga a ele.

São exemplos de pagadores os trabalhadores da iniciativa privada, a maioria dos empresários, os profissionais liberais e os autônomos. São exemplos de consumidores os funcionários públicos, a maioria dos políticos, os empresários que se beneficiam de subvenções, reservas de mercado e outros conchavos com governos, pensionistas, beneficiários de programas sociais, estudantes da rede pública, bolsistas, sindicalistas, funcionários de instituições para-estatais, entre outros que de algum modo vivem de recursos que saem do tesouro público.

E pra que que essa classificação serve? Salvo raras exceções, o fato de ser pagador ou consumir de impostos determina grande parte das opiniões políticas, econômicas, ideológicas e sociais de uma pessoa.

Pagadores de impostos tendem a desconfiar do governo. Sentem, mesmo que intuitivamente, que estão sendo explorados. Tendem a se revoltar com aumentos de impostos, a se aborrecer com burocracias, a preferir passar longe das repartições públicas. Além disso, tendem a gastar muito tempo e energia ganhando a vida, a focarem nos seus interesses pessoais, a ficar longe da política. Costumam pensar mais no futuro, consumir com moderação e fazer mais poupança.

Consumidores de impostos, intencional ou intuitivamente, sabem que suas vidas dependem do cofre estatal. Tendem a apoiar iniciativas que aumentem o poder e a arrecadação do governo. Costumam pensar no governo como uma entidade que deve estar acima da sociedade, regulando tudo. E não costumam pensar muito em de onde vem o dinheiro que recebem. Tendem a gastar mais, poupar pouco e preocupar-se menos com o futuro. Costumam ser mais engajados na política, serem militantes, formarem grupos especializados e pressionarem os políticos para promoverem os seus interesses.

Por isso, se queremos entender como uma pessoa pensa, influencia-lá ou apenas conviver bem com ela, um bom começo é procurar saber se ela é pagadora ou consumidora de impostos. Ambas podem ser úteis ou danosas tanto no plano social quanto individual. Esss classificação não deve ser usada para fomentar preconceitos e sim para nos ajudar a entender melhor o outro. Não devemos nos esquecer que, a despeito de classificaçoes, cada pessoa é um indivíduo único.

NÃO MEXA COM QUEM TÁ QUIETO

Pra quem não sabe, essa bandeira da cobrinha (Gadsden Flag) é um dos mais populares símbolos da liberdade individual.

Ela surgiu nos Estados Unidos e vem geralmente acompanhada da frase “Don’t tread on me”. Uma tradução literal seria “Não pise em mim”. Mas, isso não é uma frase que um brasileiro usaria normalmente.

Já vi várias tentativas de traduzi-la pro português. Todas tem seus méritos, mas, nenhuma me conquistou. Segue minha contribuição, com uma indisfarçada inspiração mineira.

VACINA II

Dado a persistência da polêmica, volto ao tema das vacinas pra covid. O presidente agiu mal em sua fala, desenorajou a vacinação? Talvez. Mas, não vejo como culpá-lo por defender a liberdade individual. Trata-se de item fundamental dos direitos civis. Primeira dimensão dos direitos humanos. Ademais, Bolsonaro é o que é do jeito que é. Não vai mudar.

Eu quero me dirigir é aos representantes públicos da ciência médica, aos especialistas que, supostamente, privilegiam o conhecimento à teimosia, estão abertos ao dialago, menos apegados a questões políticas e mais propensos a reverem suas posições diante de argumentos.

A questão em torno de a vacina ser ou não obrigatória é de pouca relevância. A grande maioria das pessoas vão querer se vacinar, querem viver, querem cuidar da saúde dos filhos. Se for feita uma campanha mostrando os benefícios e mitigando os riscos, com transparência e objetividade, as pessoas vão aderir, como aderem a outras campanhas de vacinação.

Mesmo a dicotomia entre vacina chinesa/russa versus vacina ocidental pode ser facilmente resolvida. Muita gente já deixou claro que não se importa com de onde a vacina vem. Então esses tomam as vacinas chinesas e russas que comseguirmos obter e as ocidentais ficam pro resto. Assim fica todo mundo feliz.

Já quando insistem em confrontar Bolsonaro ou defender obrigatoriedade ao invés de defender os argumentos favoráveis à vacina, demonstram viés político e ideológico e aumentam as desconfianças de uma parte considerável da população.

Os que preferem ter razão do que conseguir resultados que continuem polemizando.

VIGIAR E PUNIR (Resenha)

(Tempo de leitura: 5 min)

Nesta obra, Foucault é o historiador em essência. Ele analisa o desenvolvimento do trinômio poder, pena e disciplina desde a Idade Média até o Século XX. Destaca como a punição ao crime evolui do castigo físico, aplicado em público em nome do Rei, passando pela propostas de reforma que buscavam variar a pena conforme o bem ofendido pelo crime até chegar ao uso quase universal da prisão como pena no Estado Moderno. Mostra também como a arte da disciplina evoluiu neste período, passando a abarcar diversos processos de controle coletivo, não só nas prisões, mas também nos hospitais, nas escolas, nas fábricas e outras instituições que nasceram da revolução industrial. Por fim, demostra como a pena e a disciplina estão relacionadas aos mecanismos de poder, como se encaixam num arranjo social mais geral que passa a predominar nas sociedades modernas. Em sua performance descritiva e analítica, o autor é brilhante.

No entanto, ao exercer brilhantemente seu papel de historiador, ele não escapa de um problema comum nas análises históricas. Ele conta a história do trinômio poder, pena, e disciplina através de uma narrativa que busca transformar uma coletânea de acontecimentos que vão se sucedendo e se cruzando em uma cadeia de eventos planejados, coordenados e dirigidos a uma finalidade. Ele transforma um “processo evolutivo” em um “design inteligente”. Esse é um desafio que o pessoal da história terá que encarar algum dia. Achar um jeito de ser empolgante sem ser romântico. Encontrar um equilíbrio entre encanto e objetividade.

Um ponto marcante do livro é a apresentação do conceito de panóptico, um prédio construído para ser o paraíso da disciplina, um conjunto de torres e células onde indivíduos são levados viver e produzir sob constante vigilância, enquanto os vigias também são vigiados numa espiral de disciplina, onde o vigiar e ser vigiado se torna o próprio motor que movimenta a existência. Avançando um pouco no tempo, vemos que o panóptico, como construção material, se torna obsoleto com o desenvolvimento da tecnologia. As mesmas funções podem ser obtidas com mais acuidade e maior escala através de câmeras e telas, e levadas a um nível ainda mais automático e sutil através da inteligência artificial e da ciência de dados.

Por fim, fica da obra a impressão que o autor não economiza na crítica ao mundo em que vive e aos processos que lhe deram origem, porém, não consegue esboçar qualquer proposta, qualquer caminho alternativo para longe das tensões ou angústias que o incomodam. Parece se ressentir com a evolução que permitiu a Europa multiplicar sua população, sua expectativa de vida e os confortos materiais de seus habitantes, mas, ao mesmo tempo falha em propor transformações positivas. Demonstra uma visão amarga do presente e uma perspectiva sombria do futuro. A gente quase concluí que ele prefere os suplícios da era feudal às disciplinas do mundo moderno, que deseja trocar a abundância industrial pela escassez do estado de natureza. A leitura é saborosa, mas, deixa um retrogosto de apologia ao passado.