VACINA III

(Leitura: 4 min)

A discussão se vacinas devem ou não serem obrigatórias é teórica, uma questão de princípios. Na prática, vai tomar quem quiser. E será a grande maioria. Não ficar doente costuma ser uma necessidade mais urgente do que defender princípios. A obrigatoriedade é parecida com a do voto, que é obrigatório na lei mas não é na prática.

O fato de a discussão ser teórica não a torna menos relevante. Princípios são importantes, ainda mais pra quem deseja que o hoje seja melhor do que o ontem e o amanhã melhor do que o hoje.

O que está em jogo nesse debate é o dilema entre o individual e o coletivo, entre a liberdade e a submissão. Se o governo pode injetar uma seringa no corpo da pessoa sem o consentimento dela, então, já não resta mais nem um mínimo de liberdade, não resta sequer soberania do indivíduo sobre o próprio corpo. Então, nos tornamos todos meras peças numa engrenagem maior sobre a qual não temos nenhum controle. Nos tornamos todos marionetes nas mãos de quem estiver no poder, de quem estiver no comando do estado. Nos tornamos uma sociedade de escravos.

Mas, Geraldo, é pelo bem dos próprios indivíduos… Então, convença-os. Ou deixe que eles enfrentem as consequências de suas decisões ruins. Não há liberdade sem o direito de ser tolo.

Mas, Geraldo, é pelo bem da coletividade… Se admitirmos que o governo pode violar os corpos de pessoas pacíficas pelo bem da coletividade, abrimos caminhos para uma séria de possibilidades sinistras. O bem coletivo é um conceito abstrato facilmente manipulável. Nunca existiu um tirano que não apelasse pra retórica do bem estar do povo.

E não nos esqueçamos que, se dermos ao governo o direito de controlar nossos corpos pelo suposto bem da coletividade, se dermos ao governo o direito de decidir o que vamos comer, beber ou injetar em nossos corpos, não há razão para esperarmos que vá parar aí. Se o governo sabe melhor do que nós o que é bom para nossos corpos, por que não saber também o que é melhor para nossas mentes? O próximo passo natural é controlar o que podemos ler, o que podemos ouvir, o que podemos ver e, finalmente, o que podemos pensar. Tudo pelo bem coletivo, é claro.

Já vimos esse filme outras vezes na história e sabemos onde esse caminho leva. Cabe a nossa geração decidir se queremos repetir os erros do passado.

ESCOLA E SABEDORIA

Se a escola tivesse que ensinar tudo que uma pessoa precisa saber pra ser uma pessoa decente, ninguém nunca saia de lá. Não tem atalho. Tem coisa que tem que ser aprendida na família. Tem coisa que tem que ser aprendida na comunidade. Tem coisa que tem que ser aprendida ao longo da vida. E tem vergonha na cara, que se a pessoa nasce sem, nunca vai aprender.

BASE BOLSONARISTA

Bolsonaro rompe de vez com a Lava Jato. Alguns especulam que isso pode impactar sua base de apoio popular. Acho que impacta bem pouco. Segue o porquê.

O bolsonarismo foi erguido sobre três pilares. Combate à corrupção, liberalismo econômico e conservadorismo moral. Os três pilares contribuíram pra eleição do Bolsonaro. Mas, um é principal e dois são acessórios. Vamos ver mais de perto cada pilar.

O combate à corrupção foi o sopro que fez renascer a direita no Brasil. A direita tava hibernando deste o fim melancólico da ditadura militar. Tava envergonhada, com a cabeça enfiada na terra feito uma avestruz, mas, não tava morta. Boa parte do brasileiro médio sempre foi de direita. Só passou três décadas com vergonha de falar isso em voz alta.

A direita começou a renascer antes da Lava Jato. O primeiro ato que pôs o combate à corrupção na ordem do dia foi o Mensalão, que bateu direto no PT mas também resvalou no PSDB. A lava jato consolidou esse movimento. Os dois sabores de esquerda que mandavam no país foram arranhados. Os dois polos de poder político no país ficaram abalados. Tava aberto o espaço pra direita renascer. Bolsonaro e seu grupo estavam no lugar e hora certos pra ocupar esse espaço. O pilar do combate à corrupção botou o bolsonarismo de pé, mas, não é o que o sustenta.

O voto do pessoal revoltado com tanta corrupção ajudou Bolsonaro, mas, teve outro grupo importante. O pensamento liberal com foco na economia já vinha surgindo no Brasil desde os tempos do FHC e, nos últimos anos, ganhou razoável apelo popular em algumas camadas da população. Além de contar com o apoio de boa parte do empresariado. Em 2016, liberalismo reprentava voto e, principalmente, apoio econômico. O bolsonarismo soube cativar esse apoio também. E nem foi difícil, bastou colocar no barco o Paulo Guedes e dizer que ele teria liberdade pra fazer política econômica liberal. O liberais tinham que pagar pra ver, afinal, não tinham outro candidato viável mesmo. Mas, combate à corrupção e liberalismo econômico ainda não eram suficientes pra fazer um movimento vencedor. É aí que entra o terceiro pilar.

Uma boa parte dos brasileiros são conservadores, moralistas, do tipo que pode até sair escondido com um travesti, mas, não quer ver beijo gay na TV, pode até ter amante, mas, acredita firmemente na família tradicional. Pode não cumprir nenhum dos dez mandamentos, mas, se considera religioso à moda antiga. As diversas iniciativas recentes que tentaram reformar a sociedade brasileira na marra, notadamente no governo petista, deixaram esse pessoal no limite. Estavam prontos para reagir. O bolsonarismo deu a eles o meio e a oportunidade.

Somou-se a esse pilar da moral o pessoal que despreza qualquer conversa sobre aborto e o pessoal que se assusta com qualquer conversa sobre relaxamento da repressão às drogas. Se sentiu representado também o pessoal que não aguenta mais os exageros da militância ambientalista. E o bloco foi engrossando.

Por fim, esse pilar também foi reforçado por muita gente cansada de ser assaltada, sequestrada e estuprada e ver o estado se preocupar mais com os direitos dos criminosos do que com o direito das vítimas. Por muita gente que desistiu de esperar segurança do estado e quer se defender por conta própria. Todos esses grupos que se sentem vítimas das transformações sociais das últimas décadas tornaram o pilar da moral conservadora robusto o bastante para ser a força de sustentação do bolsonarismo. Isso somado aos pilares auxiliares do combate à corrupção e do liberalismo econômico, botaram o bolsonarismo no poder.

O pilar de sustentação, que mais encontra eco na população brasileira, é o conservadorismo moral. É por isso que o bolsonarismo pode se dar ao luxo de mandar o Moro pra oposição e decretar a morte da Lava Jato. É por isso que podem fritar o Paulo Guedes em fogo brando. Mesmo que os economistas liberais saiam todos do governo o pilar principal continua de pé. As pessoas que sustentam o pilar principal podem até ficarem chateadas com alguma concessão do governo ao centrão, mas, continuarão fiéis. Elas não têm outra opção viável e sabem que não terão tão cedo. Enquanto o discurso de Bolsonaro for favorável à proibição do aborto, à repressão às drogas, ao combate à ideologia de gênero e ao direito de defesa, estarão com ele.

O enfraquecimento dos pilares do combate à corrupção e do liberalismo econômico causam algum desgaste ao bolsonarismo. Mas, isso pode ser compensado com populismo, com políticas de assistência social que tragam pro bolsonarismo outro público, uma massa de miseráveis que nas últimas décadas se especializaram em viver de ajudas governamentais.

Talvez, esse rearranjo seja suficiente para garantir que o bolsonarismo continue sendo uma força dominante. Talvez não. Creio que isso vai depender também dos demais atores políticos do país e seus movimentos. Uma coisa é certa, sem graça nosso futuro político não será.

LAGOSTAS

Quem pode come, quem não pode não come.” – Jair Bolsonaro, em 1-Out-2020, sobre lagostas bancadas por dinheiro público.

Se você é pagador de impostos e ainda está fechado com esse presidente, suspeito que você tem um lado masoquista.

MAIORIAS, MINORIAS E DEMOCRACIA LÍQUIDA

(Leitura: 25 min)

1. UM POUCO DE HISTÓRIA

Recentemente escrevi sobre maiorias silenciosas e minorias barulhentas. Um colega comentou que a ordem institucional no Brasil e no mundo muitas vezes representa mais as minorias do que a maioria. Aproveitando a proximidade de mais uma eleição, proponho refletirmos sobre como a democracia representativa tende a superestimar os interesses das minorias mais organizadas e barulhentas e menosprezar a vontade da maioria silenciosa, e sobre como seria possível mitigar essa tendência.

Primeiro, vamos considerar o plano internacional. Aí, não parece haver muito que se possa fazer, já que as relações entre países, por mais que formas de governança planetária tenham sido ensaiadas nas últimas décadas, ainda são mais anárquicas do que democráticas. No entanto, os líderes e representantes que atuam em nome de seus países são eleitos democraticamente por seus respectivos povos, pelo menos nos países democráticos. Então, mesmo que as relações internacionais não sejam formalmente democráticas, serão tão mais democráticas quanto mais democráticas forem as escolhas dos representantes de cada país. É aí, no plano interno de cada país, que há muito espaço para melhoria da representatividade. E é sobre isso que quero refletir, considerando principalmente o cenário brasileiro, afinal, eu sou brasileiro, pretendo continuar vivendo aqui e acredito que, por mais que as experiências de outros países sirvam de exemplos e de aprendizado, precisamos encontrar soluções nossas para nossos próprios problemas.

A democracia representativa começou a tomar forma no século XVII e se consolidou no século XVIII, notadamente a partir da formação dos Estados Unidos da América. Houveram sociedades democráticas anteriores, como a Grécia antiga entre outros exemplos, mas, foram experiências muito diferentes e em escala muito menor. O formato de democracia que conhecemos e usamos hoje nasceu no século XVIII. É preciso reconhecer que para aquela época foi um avanço civilizatório magnífico. Desde então, mais de dois séculos já se passaram. A existência humana passou por consideráveis transformações materiais, sociais e culturais. As tecnologias que usamos hoje pareceriam mágica para muita gente daquela época; Discriminações entre as pessoas se tornaram intoleráveis. A velocidade das comunicações transformou o planeta numa aldeia global. Queiramos ou não, vivemos rodeados pelos barulhos dos vizinhos. No entanto, a democracia inventada naquela época não mudou quase nada. Continuamos votando apenas de quatro em quatro anos para escolher representantes que irão exercer poder pelos anos seguintes, teoricamente, em nome dos eleitores. Porém, enquanto os eleitores voltam para casa e só irão se manifestar novamente quatro anos depois, os eleitos agem como donos do país, do estado ou da cidade, respondendo apenas a grupos que consigam se organizar e incomodá-los continuadamente.

No século XVIII esse modelo fazia todo sentido. A população de Massachussets, por exemplo, levava dias para seu reunir e eleger alguns representantes que, por sua vez, iriam levar dias até chegar a Washington e se reunir a outros representantes do resto do país e tomar decisões. Qualquer decisão tomada pelo governo na capital irar levar dias, talvez semanas, para ser conhecida no território todo. Qualquer projeto aprovado iria levar meses, talvez anos, para ser implementado e afetar a vida de todos os cidadãos do país. Não dava pra imaginar coisa mais viável e democrática do que a eleição de representantes. Hoje, quando uma decisão tomada na Casa Branca se torna imediatamente conhecida não só em todo território americano, mas, em todo canto do planeta em segundos, afetando a vida de gente no nundo todo instantaneamente, será que ainda faz sentido continuarmos usando o mesmo modelo de representação?

2. LIMITES DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

E há outros problemas. No Brasil, por exemplo, sempre que um governante federal se vê diante de resistências aos seus projetos ou ameaçado por impeachment, costuma esbravejar: Eu foi eleito por tantos milhões de eleitores, a vontade desses eleitores tem de ser respeitada! Ora, foi eleito por tantos milhões de eleitores há um, dois ou três anos atrás. Será que se os eleitores fossem consultados agora votariam do mesmo jeito? Não sabemos e não é viável organizar uma eleição nacional a cada mês para perguntar-lhes. Da mesma maneira, sempre que um grupo de interesse consegue botar algumas centenas de milhares de pessoas nas ruas das capitais do país defendendo alguma causa, já vêm logo com aquela prosa tipo: A opinião pública está a nosso favor! Será? O que significa algumas centenas de milhares de militantes barulhentos diante de dezenas de milhões de eleitores? Será que a maioria dos eleitores se sentem representados? Hoje, não há como saber. Pode se fazer pesquisas usando tecnologias estatísticas que permitem captar de forma aproximada a opinião média, mas, sempre haverá margem de erro e nem todos vão confiar nas instituições que realizam as pesquisas. Não é, portanto, um meio oficialmente válido de aferir a vontade dos eleitores.

Há ainda as recorrentes suspeitas de fraudes em eleições e a impossibilidade de se auditar uma eleição de ponta a ponta na democracia representativa, devido ao fato de o voto ser secreto. Pode-se partir do total de votos e rastrear cada voto até a urna da qual ele saiu, mas, nunca se poderá chegar até o eleitor para perguntar se ele realmente votou naquele candidato. Mesmo que se implemente impressão dos votos, o rastreamento até o eleitor continuará impossível e, portanto, não se pode falar em um sistema totalmente auditável.

O que pode ser feito, então? Na minha opinião, a democracia representativa já cumpriu o seu papel. Seu tempo histórico já se foi. Nosso tempo, nosso modelo de sociedade, nosso modo de vida tecnológico demanda um novo modelo de democracia. Que seja confiável e auditável; que garanta um vínculo permanente entre eleitor e eleito, de modo que o eleitor seja efetivamente representado no poder; e que seja dinâmico o suficiente para responder às mudanças nas circunstâncias, no comportamento do eleito e na vontade do eleitor.

Se alguém leu até aqui talvez esteja pensando em democracia direta ou semi-direta. Não tô falando de democracia direta. Seria impossível colocar toda a população brasileira na praça dos três poderes para deliberar sobre alguma coisa como se estivesse numa ágora grega. Poderia se implementar voto online, mas, não seria suficiente. A quantidade de decisões que são tomadas todos os dias em qualquer parlamento e em qualquer governo demanda gente especializada e com muito tempo dedicado. Além disso, qualquer pessoa que já tentou administrar uma um boteco ou uma república de estudantes sabe que não se resolve nada com um bando de gente falando ao mesmo tempo. É preciso estrutura, delegação de tarefas, divisão do trabalho, enfim, decisões coletivas e administração de interesses comuns é complexo e demanda organização e pessoas capacitadas. Democracia direta não é viável nem em escala municipal, muito menos estadual ou nacional. Já a democracia semi-direta (plebiscitos, referendos, iniciativa popular e recall) é interessante e tem suas aplicações, mas, nem passa perto de resolver os problemas essenciais da democracia representativa.

3. APRESENTAÇÃO DE UM NOVO MODELO

O que eu proponho então? Creio que está na hora de começarmos a pensar seriamente na democracia líquida. O que é isso? É um conceito relativamente novo, que vem sendo desenvolvido por grupos diversos ao redor do mundo. Não é uma fórmula pronta e acabada, mas, um conjunto de idéias e propostas que podem levar à construção de um modelo democrático muito mais adaptado ao nosso tempo. Não vou esgotar o tema. Isso estaria muito além da minha capacidade e do escopo desse post. Quem tiver interesse dá um google em “democracia líquida” e vai achar muita informação. Eu vou apenas propor algumas idéias relacionadas ao tema que me parecem pertinentes e sobre as quais convido as pessoas a pensar a respeito.

O ponto que eu acho essencial é mudar a relação entre o eleitor e o eleito. Chega de dar poder a alguém e vê-lo dono de nosso destino por quatro longos anos. O eleito não deve ser dono do voto do eleitor, deve ser um procurador. Quando estabelecemos um procurador para nos representar (um advogado, por exemplo) ele só nos representa enquanto estivermos satisfeitos com o trabalho que ele está fazendo. Se perdemos a confiança no trabalho dele, seja por duvidar de sua competência ou de sua honestidade, demitimos ele e contratamos outro. Nossa relação com um político tem de ser a mesma. Temos de ter meios de dar o voto e retirar o voto a qualquer momento. Dá pra implementar isso? Com a tecnologia que já temos disponível hoje, dá. O TSE (ou outro órgão mais adequado, mas, isso já é outro assunto) constrói um sistema no qual todo eleitor pode, a qualquer momento, se conectar usando um computador ou um celular e escolher seu representante em qualquer instância política, seja a câmara municipal, a prefeitura, a assembléia estadual, o governo do estado, a câmara federal, o senado ou a presidência da república. Mas, isso é seguro? Ora, a maioria de nós faz algo semelhante pra acessar nosso banco e fazer transações com nosso dinheiro, por que não fazer com o voto? E as pessoas que não tem acesso ou não sabem lidar com tecnologia? A justiça eleitoral pode manter quiosques disponíveis para elas em locais acessíveis, com telas bem simples, de tal modo que qualquer pessoa que use uma urna eletrônica hoje consiga usar o novo sistema. A demanda por estes quiosques seria pequena e decrescente.

E como funcionaria isso? Os partidos escolheriam seus candidatos, que se registrariam no sistema e se tornariam votáveis. Candidatos avulsos também seriam bem vindos. As candidaturas poderiam ser registradas a qualquer tempo. A votação seria contínua. O eleitor tanto poderia escolher um representante para um cargo para o qual ele ainda não escolheu nenhum quanto trocar uma escolha anterior por um novo nome.

E como vamos saber quem ganhou, quem efetivamente assume os cargos? Imagino modelos ligeiramente diferentes para eleições legislativas e executivas. No legislativo, toma-se o número total de eleitores que votaram e divide-se pelo número de integrantes que queremos na casa legislativa. Quem representar pelo nenos o número mínimo de votos, assume uma cadeira. Vejamos um exemplo com base nos números aproximados da eleição pra Assembléia Estadual de Minas em 2018. Tivemos 10 milhões de votos e 77 vagas de deputado pra preencher. Desse modo, teríamos 10 milhões divididos por 77 igual a, arredondando, 130 mil. Ou seja, quem representasse 130 mil eleitores teria uma cadeira na assembléia. Alguns talvez tivessem mais votos do que isso. Por isso, creio que seria importante que o voto de cada parlamentar tivesse peso proporcional à quantidade de eleitores que ele representa. E os votos que foram para candidatos que não obtiveram os 130 mil votos? Aí, haveriam duas opções. Uma opção que o eleitor teria é mudar seu voto para outro candidato que parecesse lhe representar quase tão bem quanto e, assim, mais candidatos iriam chegando ao mínimo de 130 mil votos. A segunda opção, e aí entramos em outra característica interessante da democracia líquida, seria a delegação de votos. Da mesma forma que um eleitor delega seu voto a um representante, um representante pode também delegar seus votos pra outro. Se o José obteve 50 mil votos, ele não conseguirá uma cadeira, mas, ele pode chegar a um acordo com a Maria, colega que defende ideias e propostas semelhantes às dele, que obteve 90 mil votos e também não conseguiu sua cadeira, e delegar seus votos para ela, de modo que agora Maria terá 140 mil votos e conseguirá sua cadeira, ficando os eleitores de Maria e de José agora representados na câmara. Ora, mas, aí, não iria descambar pra compra e venda de votos, pra acordos entre candidatos que não tem qualquer semelhança a não ser o desejo de obter algum poder? Não creio. Lembrem-se que o voto é dinâmico, a votação é contínua, o eleitor pode mudar o voto a qualquer momento. Se o eleitor de José não se sentir representando por Maria, o acordo entre os dois não vai durar nada. No dia seguinte os eleitores de José mudam seus votos para outro candidato ou pra nenhum, a representatividade de José cai de 50 mil pra meia duzia de votos e Maria perde novamente sua cadeira na câmara. A delegação de votos só é efetiva se os eleitores se sentirem representados por ela.

No executivo suponho que teria de ser um pouco diferente. Como há só uma vaga e é necessário uniformidade de atuação do governo, nem todos os eleitores poderão ser representados, terá de haver governo e oposição. Porém, é desejável que o governo represente o máximo possível de eleitores. Imagino um modelo em que, para assumir o governo, um candidato ao executivo precisa representar dois terços do eleitorado. Pra isso, além de seus próprios votos, ele pode fazer coalização com outros candidatos e obter delegação de votos (conceito explicado acima quando falamos da eleição parlamentar). E se ninguém conseguir os dois terços? Continua-se as negociações entre os candidatos detentores de soma significativa de votos, ao mesmo tempo em que os eleitores podem se manifestar mudando sues votos, até que se chegue a uma coalizão viável. Enquanto isso o governo é exercido pelo executivo anterior ou, na falta dele, pelo chefe do legislativo com poderes limitados. Só que, no caso do executivo, diferentemente do legislativo, é preciso haver critérios distintos para ganhar a cadeira e para perder a cadeira. Imagine o seguinte cenário: Dia 1: um candidato João consegue os dois terços do votos e assume; Dia 2: 1% dos eleitores mudam de ideia, o João perde o cargo; Dia 3: um candidato obscuro que tem 1% dos votos adere ao João, o João assume de novo; e assim por diante. Não dá. Nenhum governo funcionaria com essa instabilidade. Imagino que, uma vez que alguém assume o cargo, teria que ter algum tempo e tranquilidade para montar um governo e implementar seus planos. Penso que um bom critério para um chefe do executivo perder o cargo seria sua base eleitoral baixar de dois terços para menos de um terço. Então, se o governo começasse a ir mal, veríamos eleitores retirando seu voto ou mudando seu voto pra candidatos de oposição. A princípio isso seria um movimento esperado pelo governo. Ninguém consegue agradar a todos. Porém, se a insatisfação fosse grande, a ponto de menos de um terço dos eleitores continuar apoiando o governo, ele perderia automaticamente o cargo e o processo de formação de um novo governo começaria. Além disso, saberíamos, o tempo todo, a qualquer momento, qual a real representatividade de um governante.

4. DESAFIOS E POSSIBILIDADES

A essa altura, talvez vocês estejam pensando que esse sistema seria muito instável, com políticos assumindo e caindo o tempo todo. Eu acredito que no início seria meio instável mesmo. Mas, com o passar do tempo, as pessoas se acostumariam com o modelo. Os políticos se veriam obrigados a cassar votos fazendo propostas factíveis, afinal, não durariam muito se traíssem seus compromissos e também aprenderiam a representar melhor os eleitores, que estariam de olho e teriam poder para avaliá-los de fato o tempo todo. Os eleitores se veriam obrigados a votar com mais responsabilidade e acompanhar a atuação de seus representantes. O sistema acharia um equilíbrio.

Agora, precisamos tratar do que, a meu ver, é o principal prolema desse modelo. O voto teria que ser aberto. Seria muito difícil de manter a segurança e integridade de um sistema desses se os votos fossem secretos. Existem soluções tecnológicas para votações online e secretas, mas, não creio que seriam suficientes. Um sistema de votação continuada, com mudança de votos a qualquer tempo, com delegação de votos, seria impossível de ser mantido íntegro e seguro sem auditoria de uma ponta a outra. Seriam inevitáveis votos sumirem aqui e aparecerem acolá. Só voto aberto daria conta.

Mas, acabar com o voto secreto seria mesmo um problema? Vejamos. A ideia de votação secreta fazia todo sentido numa época de famílias patriarcais, coronelismo, currais eleitorais e outras relações sociais de subordinação violenta ou opressiva. Mas, atualmente, com o grau de liberdade individual e garantias fundamentais que experimentamos, me parece razoável que cada um faça suas escolhas políticas livremente e assuma responsabilidade por elas. Talvez o voto aberto ainda possa ser problemático em favelas controlados por traficantes ou milícias, mas, vamos pensar francamente: com toda a ausência de direitos básicos e proteção do estado que tais comunidades enfrentam, a dificuldade de exercer os direitos políticos está longe de ser o maior dos problemas.

Alguém deve estar se lembrando que a Constituição de 88 define como cláusula pétrea o “o voto direto, secreto, universal e periódico”. É verdade. Mas, também é verdade que a constituição possui normas principiológicas, que devem ser interpretadas à luz do desenvolvimento presente da sociedade brasileira, como é fartamento exemplificado pelos acórdãos e súmulas do STF em diversos temas, e também é verdade que muita coisa mudou na nossa sociedade entre 1988 e o momento atual. Pretendo demonstrar que o que proponho não ofende de modo algum a essência do artigo 60 acima citado. Primeiro, o voto deve ser direto, o que significa que cada voto deve ter o mesmo peso. O sistema que proponho torna o voto ainda mais direto, então, não vejo problema aqui. Segundo, o voto deve ser universal, isto é, todos devem ter direito a votar sem discriminações. Não se mexe nisso. Terceiro, o voto deve ser periódico. Aqui, pode haver algum problema de interpretação. Alguém pode argumentar que a possibilidade de voto contínuo que proponho não é voto periódico. Acredito que no voto contínuo apenas se reduz o período a um tempo bem pequeno, não mudando a essência da ideia, que é a possibilidade de o eleitor reavaliar seus representantes com alguma frequência. Pelo contrário, a democracia líquida aumenta muito essa possibilidade. Por fim, vamos examinar a questão do voto secreto. Acredito que a essência dessa norma, quando colocada pelo legislador em 1988, era a necessidade de garantir que o eleitor não será perturbado ao exercer seus direitos políticos, que será livre para escolher quem lhe representa, que não será compelido por qualquer força exterior à sua autonomia individual a votar contra sua própria vontade. E acredito também que o sistema que proponho cumpre essa necessidade essencial melhor que o voto secreto. O eleitor terá a garantia de poder exercer seu voto. Nenhum contratempo poderá impedir que o eleitor vote, afinal, se ele não conseguir fazê-lo hoje, poderá fazê-lo amanhã com a mesma eficácia. Se for compelido de algum modo a votar diferente de sua vontade, poderá corrigir seu voto a qualquer momento futuro, além de poder procurar a polícia e/ou a justiça para punir o constrangimento ilegal de que foi vítima. Além disso, terá a garantia de que não foi vítima de qualquer tipo de fraude, posto que poderá, a qualquer tempo, conferir se seu voto está corretamente registrado no sistema e alterá-lo se desejar. Assim, sendo, acredito que em um sistema de democracia líquida, a liberdade de exercer os direitos políticos que a Constituição de 88 quis resguardar não só estará garantida, como estará sendo levada a um patamar mais avançado, não podendo, portanto, se falar em inconstitucionalidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Então tá tudo resolvido, bora por pra funcionar? Acho que não. Acredito que mudanças impactantes devem ser feitas com cautela, tão gradualmente quanto possível. Também é importante testá-las em pequena escala, avaliar os resultados, ajustar o que for necessário e ir aumentando a escala na medida que os diversos envolvidos forem ganhando confiança na novidade. Creio que o ideal seria fazer projetos pilotos em algumas cidades em regiões variadas do país, onde a população aprovasse previamente a experiência através de plebiscito. Poderia se testar modelos distintos em cada cidade para se verificar quais características do modelo funcionam melhor na prática. Quado tivermos um modelo estável no nível municipal, vamos pro nível estadual e assim por diante.

Finalmente, acho importante salientar que este post não pretende ter rigor acadêmico ou jurídico. Pretende apenas lançar uma ideia, fomentar o debate sobre um tema que acredito ser relevante para nosso país, para quaisquer sociedade livre e para a própria ideia de democracia.